1982-2002

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As razões da crise e a crise da razão

A crise de governabilidade que se abate sobre o Brasil decorre da conjugação de vários fatores. Trata-se de uma crise de modelo combinada com crise econômica, de uma crise do modo de governar, de uma crise político-institucional e de uma crise moral. Crise de modelo, no sentido de que o eixo estruturante do projeto de poder do governo Fernando Henrique se assentou apenas sobre as reformas liberalizantes e sobre as privatizações. Esgotado este ciclo, o governo não tinha mais nada a oferecer à sociedade.

O atual governo caiu no conto da mágica do mercado. Bastaria abater o velho estatismo autárquico e estruturar uma economia de mercado, que as coisas andariam por si mesmas. Em dois momentos cruciais, o presidente deu mostras de que acredita nesta mágica. O primeiro foi em 1997, quando cresciam os índices de desemprego. Ao responder uma indagação sobre o que o governo faria para enfrentar o problema, o presidente respondeu que se tratava de um problema dos empresários e dos trabalhadores. Com a crise da energia, o Fernando Henrique deu o mesmo tipo de resposta: faltaram investimentos privados. Se é verdade que o modelo do Estado Nacional autárquico apresentava vários aspectos de esgotamento, a atual aliança governista limitou-se a destrui-lo sem estruturar um novo modelo de Estado. O legado que nos deixam é o de uma estrutura estatal falida, sem capacidade de planejar, regular, induzir e mediar. É aqui que se articula a crise do modo de governar. Trata-se de um governo inativo, sem planejamento estratégico e sem capacidade de gestão. Na medida em que a opinião pública vai tomando conhecimento desse legado através da crise de energia, passa a julgar que está sendo governada por um governo incompetente e omisso.

A crise político-institucional não é de responsabilidade exclusiva do atual governo, mas diz respeito ao modelo político e institucional do país e às tradições e costumes. O atual governo apenas se acomodou neste modelo e exasperou os seus vícios. O nosso modelo presidencial define-se por duas características: trata-se de um presidencialismo imperial, que tem nas medidas provisórias o seu modo de operação; e trata-se de um presidencialismo de coalizão, cujo fundamento não consiste numa aliança interpartidária fundada num programa, mas na agregação de grupos políticos e de partidos segundo interesses fragmentários. Da primeira característica decorre uma ação governante centralizada no Executivo, uma atrofia do Legislativo e uma manipulação do Judiciário. Da segunda, decorre que para conseguir o apoio necessário no Congresso, o Executivo precisa recontratar a cada momento os termos de sua aliança de sustentação, acarretando elevados custos econômicos e políticos para financiar a governabilidade. Mesmo assim, a governabilidade não fica garantida porque o sistema não é funcional e porque escorrega para a corrupção. Somente uma profunda reforma política pode superar esses impasses do sistema.

Por fim, há a crise moral. A crise moral não foi provocada pelo "dedo em riste do jornalismo moral" ou pela ação jacobino-destrutiva ou fascista da oposição, como supõem o professor Giannotti e o presidente Fernando Henrique. Em primeiro lugar, porque as vísceras podres do atual governo foram expostas pela própria base governista. A imprensa simplesmente noticiou, a opinião pública ficou indignada e a oposição cumpriu o seu papel ao propor a investigação. Em segundo lugar, porque não há conceitos teóricos, não há "zona cinzenta de amoralidade" entre a política e a moral que justifique as caixas pretas em que se constituíram o Proer, as privatizações e a desvalorização cambial e os desvios de R$ 2 bilhões da Sudam, de R$ 1,6 bilhão da Sudene, de R$ 1,5 bilhão para os bancos Marka e FonteCindam e de R$ 300 milhões do TRT de São Paulo, entre outros casos de corrupção.

A crise moral do governo revela também um sintoma de amadurecimento democrático e de consciência ética da sociedade, que não está mais disposta a aceitar a ação predatória das elites governantes. Na tradição das transformações conservadoras que se processa na história do Brasil, uma elite predatória é substituída por outra. Tratam-se de elites predatórias porque expropriam renda e riqueza de forma ilegítima e além do tolerável. O atual governo promoveu a substituição da velha elite do Estado Nacional autárquico por uma nova elite, ligada aos esquemas financeiros, à apropriação de ativos públicos subvalorizados, às consultorias, ao uso de informações privilegiadas. Basta dizer que essa nova elite manteve a péssima distribuição de renda que se verificava há dez anos atrás, como revelam os dados do IBGE.

O professor Giannotti e o presidente Fernando Henrique equivocam-se e confundem ao pregarem que as leis, para tornar a política possível, requerem uma "zona de amoralidade". Por serem o fundamento do ético, do direito e do universal, as leis precisam ser justas e morais. Somente assim elas podem ser o critério de retificação das imprevisibilidades e também da imoralidade inerentes à ação política e às ações humanas. A amoralidade racionalizada em lei torna-se imoralidade e um mal para os cidadãos constituintes da República. O critério de juízo da política e dos políticos não pode ser a manutenção do poder pelo poder ou do poder para satisfazer os interesses de uma pequena elite. Maquiavel e Weber nos ensinaram que o critério de julgamento do político deve ser as conseqüências, boas ou más, que a ação produz para o bom governo do Estado e dos cidadãos.

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