1982-2002

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A desmedida do governo

Começo este artigo dizendo que tenho consciência de que não posso ser acusado de ser um oposicionista radical contra o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Pelo contrário, defendo no PT uma postura oposicionista que leve em conta a crítica, a fiscalização, mas também o diálogo e a apresentação de alternativas. Acredito na necessidade de reformas constitucionais capazes de tornar o Estado mais democrático e eficaz. Procuro pautar minha ação política pela ética da responsabilidade, tão cobrada da oposição pelo filósofo-amigo do presidente, José Arthur Giannotti.

Esta postura política exige, neste momento, que constate que o governo perdeu todo senso de proporção, toda medida do razoável. Esta afirmação refere-se à nova rodada de concessões fisiológicas patrocinada pelo governo com a retomada da votação da reforma da Previdência. Não se trata de um episódio isolado, mas de uma prática que se iniciou quando o governo não vetou a decisão do Congresso de isentar de punição o senador Humberto Lucena por ter usado a gráfica do Senado na última eleição. Naquele momento, o governo sinalizou que seria suscetível a todo o tipo de pressão de sua base de sustentação parlamentar. As sucessivas concessões que fez aos vários grupos extrapartidários, especialmente aos ruralistas, em momentos críticos da votação das reformas foram aprofundando a prisão do governo às demandas fisiológicas.

A prática fisiológica no atual governo mudou de forma em relação ao fisiologismo praticado no governo Sarney e à corrupção do governo Collor. No governo Sarney, o fisiologismo implicava essencialmente a troca de apoio por cargos. No governo Collor, cobrava-se propinas dos empresários em troca de benefícios do Estado. O fisiologismo do governo FHC acoberta-se sob a aparência de legalidade conferida por um instrumento que hoje é arbitrária e antidemocrático que são as medidas provisórias. Agora não estão em jogo cargos e alguns milhões em propinas. Estão em jogo bilhões de Reais concedidos a grupos particulares que se articulam no Congresso para impor novas formas de privatização do Estado. Isto não passa de uma forma de corrupção legalizada porque o governo confundiu completamente o que é pressão política legítima com a mera apropriação com instrumentos de barganha política de recursos públicos.

Políticos e intelectuais governistas assumem o discurso cínico de que na democracia o jogo da barganha, da concessão fácil, é algo normal. Perde-se de vista qualquer critério de universalidade e de justiça na prática política democrática. Outros argumentam que os benefícios — a aprovação das reformas — serão maiores que os custos — a compra do apoio. Isto equivale legitimar práticas ilegais e criminosas em nome de incertos benefícios futuros. Equivale justificar quaisquer meios em nome de fins duvidosos. A lógica do fisiologismo implica uma relação em que quanto mais o governo cede mais será pressionado por sua base. Ele obriga-se a cada votação importante recontratar o apoio de seus aliados.

Tudo isto não ocorre por acaso. O governo do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) emprestou uma ilustração acadêmica à dominação predatória das elites. Agora, o velho assalto patrimonialista da coisa pública vem rubricado com o discurso intelectual e com o aval das MPs reeditadas ao sabor dos negócios e do tráfico de influência, sem que os representantes do eleitorado possam se manifestar. Quando se trata dos problemas sociais, o governo pede paciência; quando se trata da "coisa nossa" das bancadas de interesses, o governo age com urgência. Quando se trata dos "de baixo", dos servidores públicos, dos sindicatos, o governo os acusa de corporativismo; quando se trata dos "de cima", dos banqueiros, o governo alega agir em nome do "interesse público". Quando se trata da reforma agrária, não há dinheiro; quando se trata dos ruralistas, há o pronto-socorro do Banco do Brasil, mesmo que quebrado. O governo transformou o mérito da estabilização econômica em carrasco do social e em avalista da concessão de benefícios a fraudadores e a inadimplentes irresponsáveis. Transformou a necessidade das reformas em licenciosidade com o dinheiro público, em festa fisiológica para as elites que sempre se serviram deste Estado.

Enquanto a sociedade é sacudida por uma sucessão de tragédias e de chacinas o governo se omite de governar. Limita-se em administrar um plano econômico herdado da administração passada. Em nome deste plano abandonou todas as outras iniciativas. Promete refundar o Estado com as reformas, mas abandona o Estado presente à inércia da decomposição. O Estado não age, não fiscaliza, não administra e não executa. Que o digam os familiares das vítimas da hemodiálise. E que o diga o trabalhador contribuinte do Imposto de Renda ao deparar-se com a sonegação das empresas, dos grandes proprietários de terras etc., e ao deparar-se com o festival de concessões.

É preciso por um basta no macrofisiologismo. É preciso que o governo pare de prometer uma coisa e fazer o seu contrário. É preciso que o realismo cínico seja substituído por um mínimo de coerência e de respeito à opinião pública. Ainda há tempo do governo mudar de rumo, abandonar a lógica elitista que assumiu. Caso contrário, este governo, que foi agraciado com uma imensa boa vontade da sociedade, verá sua credibilidade destruída pela falta de senso de proporção. Infelizmente, já surgem sinais de que quem pagará o preço da irresponsabilidade de forças políticas que atuam no governo e no Congresso serão as instituições democráticas.

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