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A história do Araguaia

O jornal "O Globo", numa série de reportagens recentes, lançou luz sobre aspectos desconhecidos da história da guerrilha do Araguaia, organizada pelo PC do B na década de 70. Este trabalho jornalístico de pesquisar os acontecimentos, remontar fatos, é plenamente condizente com características inovadoras da imprensa moderna. Na verdade, os jornalistas são também, em parte, historiadores, cientistas sociais e os acadêmicos têm nos jornais diários material substancial para as suas teorias e suas pesquisas.

Por outro lado, as reportagens de "O Globo" tiveram o mérito de cortar com estilete um aspecto problemático de como é estudada a história do Brasil. Pela história oficial, parece que somos um país sem dramas, sem tragédias, sem lutas. Ocorre que a história dos oprimidos, a história dos "de baixo", a história dos derrotados nunca ganhou relevância acadêmica e oficial. Somos o país do "berço esplêndido", onde todos parecem querer fugir da luta ou de se esquecer dos que lutaram. Não é por acaso que somos um povo carente de heróis. A relação que o Brasil deve ter com a sua história tem que ser outra porque se não formos capazes de construir uma identidade mínima que tem nos acontecimentos históricos os vínculos identitários fundamentais, seremos um país fragmentado no individualismo selvagem, na falta de solidariedade e na pulverização da globalização. Universalismo e identidade comunitária são dois pressupostos que devem andar juntos.

As revelações sobre a guerrilha do Araguaia permitem este olhar diferente da história, sem censura, sem medo, sem rancores e com o sentido de que se deve tirar lições daqueles episódios para o presente e para o futuro. Quando se diz que a história está sendo sempre reescrita é porque ela não tem um caráter meramente monumental, estático, mas porque como seres históricos temos interlocução com os nossos antepassados. No caso da guerrilha, esta perspectiva adquire um peso ainda maior porque ela é ainda um acontecimento vivo na história do presente.

A experiência do Araguaia tem que ser dimensionada naquele contexto histórico marcado pela existência da ditadura, pela falta de alternativas e de liberdade, pela Guerra-Fria e pelos movimentos de libertação nacional. Claro que havia também o problema social interno relacionado à questão da posse da terra. Problema que, diga-se de passagem, persiste até hoje como se viu no massacre dos sem-terra. Uma avaliação serena do episódio indica que não se trata de trazer a guerrilha do Araguaia para a luta política de hoje porque vivemos outra realidade histórica. Independentemente dos acertos ou dos erros que levaram ao movimento do Araguaia, deve-se evitar os julgamentos maniqueístas e perceber que sob as condições da luta democrática e numa era de despolarização do conflito ideológico, a guerrilha não é mais uma alternativa válida. O importante é reavaliar o passado com os olhos mirando o futuro.

As reportagens de "O Globo" trouxeram a público, com testemunhos documentais, a violência e as atrocidades inauditas praticadas por integrantes do Exército que participaram da campanha contra a guerrilha. As atrocidades relatadas pelo jornal situam-se fora das convenções internacionais sobre a guerra e mostram a que nível de selvageria se pode chegar neste país, marcado por uma história de violência contra aqueles que lutam por justiça social. As práticas militares que lá foram adotadas devem servir de reflexão também para as Forças Armadas a fim de que se possa extrair lições positivas de fatos tão condenáveis.

Talvez a guerrilha estivesse fadada ao fracasso mesmo que pudesse se desenvolver. Mas os que lá lutaram e os que lá tombaram o fizeram em nome de uma causa, em nome de um ideal. Isto merece o mais alto respeito e admiração, principalmente nos dias de hoje quando a grandiosidade das causas cede lugar ao jogo de interesses mais mundanos, quando o sentido heróico da luta cede lugar ao afã da notoriedade. No momento em que o mundo parece esvaziar-se de significados e de conteúdos, espelharmo-nos em pessoas que decidiram dedicar sua vida a uma causa que tinha um fim nobre e não titubiaram em correr o risco da morte por ela nos remete, no mínimo, para um exame mais criterioso do papel da nossa existência e do sentido das nossas ações. Os familiares dos que lá morreram têm o direito imprescritível de saber do destino de seus parentes, chorá-los e homenageá-los. Esse direito é reconhecido até mesmo entre dois Estados em guerra. Infelizmente, o Estado brasileiro negou este direito a cidadãos seus e ainda está em dívida com muita gente, principalmente com os familiares dos guerrilheiros mortos no Araguaia.

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