1982-2002

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Projetos


Por uma sociedade justa - uma proposta

Por que um novo mandato

O mundo atual está marcado por alguns acontecimentos e determinações que sinalizam a necessidade de reorientação profunda no modo de fazer política por aqueles que pretendem sustentar uma posição de esquerda, tais como: o colapso do socialismo, o fim da Guerra Fria, o triunfo da ideologia neoliberal, a globalização, as crises financeiras incontroláveis, os problemas ambientais, a revolução tecnológica e as imensas parcelas da humanidade que vivem em condições de pobreza e miséria. Vivemos uma era de incertezas e imponderabilidades. A instabilidade que ocorre no plano mundial se reflete em cada país, na medida em que o mundo esta cada vez mais interligado

O Brasil não está imune aos fenômenos globais. Pode-se dizer que o governo Fernando Henrique inaugurou uma nova fase, pois trata-se de um governo que lidera um bloco político que vai desde o centro até à direita, que tem na estabilidade econômica o seu maior capital político, e que procura implementar um amplo programa de reformas em nome da modernização do Estado e da orientação da economia para o mercado.

Por adotar um programa que favorece as elites, o governo não conseguiu superar alguns impasses históricos da vida brasileira. A exclusão social, a pobreza, o analfabetismo e a concentração de renda e riqueza são problemas que estão no mesmo cerne que separam o Brasil real do Brasil desenvolvido desejado por muitos. Não resta dúvida de que o Brasil precisa de reformas, mas, de quais reformas? Tudo indica que o conteúdo e o sentido das reformas do governo FHC não apontam para a superação dos impasses históricos que aprisionam o Brasil na condição de uma sociedade não desenvolvida e injusta.

A grande tarefa das eleições de 1998, consiste no debate dos temas apontados acima e daqueles relacionados às escolhas políticas e econômicas internas. No mandato de deputado que se encerra este ano, Genoíno deu prioridade à luta pela reforma do Congresso. Disputou a presidência da Câmara no início da legislatura contra o deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA) apresentando amplo programa de reforma do Parlamento. Se é verdade que sempre fizemos política com prazer, com responsabilidade e a serviço de causas democráticas, hoje, o que mais nos anima é continuar na disputa política por dois motivos principais: o primeiro diz respeito à convicção de que a sociedade brasileira é profundamente injusta. Lutar por justiça, cidadania, direitos e eqüidade é a razão essencial que nos motivam à militância política.

O segundo vem do fato de que o Brasil está num processo de mudanças que definirá a sua face no início do novo milênio. Com a experiência acumulada que temos, seria irresponsabilidade não participar da disputa dos rumos do país visando torná-lo mais civilizado, mais desenvolvido e mais justo. Queremos desenvolver uma intervenção mais forte e eficaz na disputa dos rumos gerais do país, particularmente naquilo que se refere ao sentido das reformas. Desde a Constituinte, passando pela fracassada revisão constitucional, pelo plebiscito sobre sistema de governo – onde defendemos o Parlamentarismo - e pelo processo em curso de reformas constitucionais, sustentamos - muitas vezes em posição minoritária no PT - a necessidade da esquerda intervir no processo político com uma plataforma reformadora.

Ao apresentar este programa aos eleitores e apoiadores, aos militantes do PT e aos não filiados, a todos aqueles que acalentam sonhos e esperanças de um mundo melhor e de um futuro mais justo e eqüitativo, queremos recontratar o nosso compromisso com seriedade e responsabilidade, orientados pelas idéias gerais aqui expostas.

Justiça e eqüidade

O colapso do comunismo não acabou com a possibilidade das utopias. Max Weber afirmou categoricamente que jamais se teria alcançado o possível se não se tivesse almejado o impossível. As visões de comunismo e socialismo que se explicitaram talvez estivessem erradas, principalmente, os meios empregados em nome dessas causas é que foram desastrosos e em muitos casos criminosos. É preciso redimensionar a relação entre a utopia imaginária e os objetivos reais da ação política. A utopia deve servir como um conjunto de valores, um sentido regulador da nossa ação. Sem ela cairíamos no praticismo oportunista que caracteriza tantos políticos. A política real implica a ação referenciada no possível, mediada pelos instrumentos e meios capazes de produzir resultados concretos, ainda que limitados e medida pelos valores. Se isto é verdadeiro, qual a idéia reguladora que hoje sintetiza uma relação adequada entre o desejo de um mundo melhor e a realidade do mundo em que vivemos?

A busca de uma sociedade justa vem se tornando o grande ideal deste final de século e de milênio para um número cada vez maior de pessoas, de movimentos e de partidos. Com o colapso do comunismo, o sistema democrático de governo vem se afirmando em quase todos os países. Mas a democracia não tem o mesmo significado para todos, nem na sua forma nem no seu conteúdo. Alguns países a adotam com elevado grau de liberdade; outros adotam regras democráticas de disputa política, mas com restrições significativas às liberdades. Para uns, a democracia não deve interferir nas relações sociais e econômicas; para outros, ela deve garantir o bem-estar e a eqüidade.

A liberdade é um dos pressupostos fundamentais da sociedade justa e o valor supremo da democracia, o qual se afirma a partir de vários ângulos de abordagem. Germinou com as aspirações humanas de liberdade de pensamento, de consciência, liberdade da pessoa, liberdade religiosa e as liberdades civis para, finalmente, se consagrar como liberdade política, entendida como liberdade de participação igual para todos nos assuntos políticos. A liberdade representa, hoje, em termos políticos e civis, a garantia de direitos fundamentais imprescritíveis e não passíveis de supressão. É certo que sem determinadas condições de existência e sem garantia de qualidade de vida razoável, grupos sociais e indivíduos não têm capacidade assegurada de desfrutar dos direitos de liberdade. A sociedade justa deve garantir as condições necessárias para que indivíduos e grupos desfrutem da liberdade e deve ser entendida como potencializadora da liberdade dos menos favorecidos, capacitando e ampliando o leque de suas oportunidades e chances de vida. Trata-se de buscar equilíbrio econômico e material, condição de acesso a bens mais amplos, como ensino, cultura etc. A sociedade justa é inseparável da eqüidade que não significa o igualitarismo nivelador preconizado pelo socialismo. Expressa a idéia da garantia de condições básicas de existência e desfrute dos bens materiais e culturais. A sociedade justa não se reduz aos aspectos econômicos e de bem-estar, mas agrega também as liberdades políticas e individuais. O bem-estar não pode ser garantido às custas da violação dessas liberdades. A justiça, em sentido amplo, não pode sacrificar a liberdade de poucos em nome do bem-estar de muitos, nem o bem-estar de muitos em nome da liberdade de todos. A sociedade justa diz respeito à inviolabilidade de cada pessoa situada nas liberdades e nas necessidades, cuja satisfação básica constitui a idéia de justiça. Esta inviolabilidade diz respeito à garantia efetiva de uma série de direitos constitutivos da cidadania. A sociedade justa, inerente à democracia, não pode ser entendida como forma acabada ou um estágio final de sociedade. É, antes de tudo, uma idéia reguladora da ação política e da praxis social, visando alcançar um estágio razoável de liberdade, de bem-estar e de progresso material e cultural, a partir do qual a sociedade poderá desenvolver novas potencialidades e novas perspectivas. A justiça deve ser a virtude orientadora das instituições políticas e sociais do sistema democrático de governo. A luta pela justiça requer a transformação de tais instituições no sentido de torná-las compatíveis com a busca desta virtude.

Brasil: um país injusto

Partindo da idéia-síntese da luta por uma sociedade justa, é preciso ampliar e conferir um sentido mais geral ao programa de ação parlamentar para um novo mandato. Ora, se a sociedade justa e a justiça são constituídas por uma inviolabilidade básica da pessoa humana, cointegrada por determinados graus de liberdade e de bem-estar, a sociedade brasileira está muito longe de qualquer padrão razoável de justiça. Se deixarmos de lado o paradigma ideal da sociedade justa e adotarmos o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano da ONU para o Brasil dos últimos dois anos, veremos que o país está longe de ser justo e eqüitativo. As conclusões negativas do Relatório, feito com base em dados estatísticos levantados pelo IPEA, são reforçadas por estudos acadêmicos, dados do IBGE e pelo relatório anual da OEA sobre direitos humanos no Brasil.

Desenvolvimento Humano é um conceito abrangente que leva em conta a ampliação das opções e oportunidades das pessoas e se fixa em três elementos: "desfrutar de uma vida longa e saudável, adquirir conhecimentos e ter acesso a recursos necessários a um padrão de vida decente". Tanto o Relatório da ONU como os demais relatórios e estudos são consensuais em revelar o elevado grau de pobreza e analfabetismo da sociedade brasileira dado pelo elevado grau de concentração de renda e altas disparidades salariais. O Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, divulgado no final de 97, mostra que no Brasil os setores mais pobres da população (como os sem-terra, os índios e os favelados), são as maiores vítimas da violência social e da violência do Estado. Já um relatório do IBGE, também divulgado em dezembro de 97, revela que, de 1987 a 1996, o número de famílias com renda inferior a cinco salários mínimos aumentou em 21 por cento em relação às famílias de todas as outras faixas de renda. Isto sugere, inclusive, que os ganhos distributivos iniciais proporcionados pelo Plano Real estão se evaporando. Estes e outros dados permitem afirmar, categoricamente, que a sociedade brasileira é uma sociedade injusta.

A sociedade injusta articula um Estado ineficiente e desacreditado, com uma sociedade civil desarticulada, e uma cidadania deficitária e sem direitos. Um profundo déficit de democracia no Estado e na sociedade é a marca mais forte da sociedade injusta. A Revolução de 30, é verdade, criou vários pré-requisitos para o surgimento da democracia moderna e afirmou a noção de que o bem coletivo deveria ser produzido pelo setor público, contariando, assim, o jogo político fechado no interior das elites da República Velha e que se destinava a distribuir as benesses patrimonialistas. Estabeleceu as bases do ordenamento da competição da economia privada, do surgimento das categorias profissionais, da estratificação, da agenda do movimento operário, da política social e da universalização do sufrágio.

Mas o corporativismo, a burocratização, a ação tutelar do Estado sobre a sociedade civil, a estatização dos conflitos sociais, a fragilidade representativa dos partidos políticos, o populismo e o autoritarismo foram minando a participação política dos cidadãos, desestimulando o seu engajamento nas organizações sociais e refreando a competição político-partidária aberta, segundo normas. As transições conservadoras pelo alto consagraram a máxima elitista do "façamos a revolução antes que o povo a faça", confirmando a avaliação de Sérgio Buarque de Holanda de que no Brasil a democracia sempre foi um grande mal-entendido. A instabilidade política e a crise social, com longos períodos de autoritarismo, pontificaram nos mais de 60 anos de República Nova. O último ato dessa crise institucional permanente foi o impeachment de Collor.

Apesar dos avanços recentes de democratização e esperança de uma vida social e econômica mais estável proporcionada pelo Plano Real, o Estado desacreditado e a cidadania não-participativa são ainda as nossas principais características. As reformas do governo Fernando Henrique são limitadas e conservadoras. Estudos recentes confirmam que as filiações partidárias e sindicais são baixas e até decrescentes, e são poucos os que participam em alguma associação da sociedade civil. O número de pessoas que se dirige ao poder público, ao judiciário, à polícia ou a outras instituições para resolver conflitos ou até mesmo para reivindicar direitos é extremamente baixo. Mais da metade dos que adotam esta iniciativa se dirigem aos políticos ou ao poder público para estabelecer uma relação do tipo clientelista-paternalista, ao passo que o conflito social é extraordinariamente alto. Tanto o judiciário como a polícia apresentam altos índices de ineficiência no atendimento e resolução das demandas dos cidadãos. A mesma falência da governabilidade ocorre em relação às políticas públicas, principalmente nas áreas da saúde, educação, habitação e segurança. A informalidade e a precarização crescem nas relações de trabalho. Pesquisas revelam que a esmagadora maioria dos brasileiros não tem noção de seus direitos.

Sucessivas tragédias vêm acontecendo na vida dos brasileiros por conta de irresponsabilidades privadas e de omissões públicas. Basta lembrar as enchentes anuais que castigam principalmente as populações mais pobres das grandes cidades. São prejuízos incalculáveis, pessoas sem lar, epidemias e um poder público que, por sua criminosa incompetência, joga a culpa nos fenômenos naturais ou na própria população. Quem não se lembra da tragédia do Bateau Mouche, das vítimas da hemodialise em Pernambuco, dos idosos que morreram em clínicas que são verdadeiros depósitos humanos, do shopping de Osasco, do edifício Palace no Rio, da vergonha de uma infância abandonada pelas ruas das grandes cidades, e dos recém-nascidos que morrem por falta de leitos? Estas tragédias são produtos de um Estado que não garante direitos, de empresários sem escrúpulos na busca do lucro fácil e de um judiciário que não pune os culpados e reforça uma justiça elitista.

O resultado de tudo isso é o enfraquecimento da cultura cívica, o decréscimo da participação, o descrédito no Estado e a falência da representação política. Em contrapartida, cresce a violência social, a organização criminal e o desrespeito às leis. Isto articula um comportamento não-segundo normas com o fortalecimento da cultura predatória, baseada em códigos privados. A selvageria social é a contraface do descrédito institucional.

É sobre a sociedade injusta que é preciso atuar politicamente no sentido de inverter a tendência da injustiça em favor de uma tendência à justiça. A ação política que preconizamos deve partir da crítica radical às instituições sociais, econômicas e políticas existentes e desembocar num profundo programa reformador das mesmas instituições visando radicalizar a democracia, ampliar a cidadania, criando novas esferas de participação social e política e garantir direitos. Um programa reformador deve voltar-se para a reconstrução do Estado, capacitando-o para uma ação eficaz no provimento de serviços públicos essenciais, no seu papel normativo, regulador e fiscalizador, no desempenho de políticas públicas estratégicas e na sua capacidade fiscal e de investimentos. A partir desta idéia, o novo mandato deve propor e/ou apoiar várias propostas de reformas constitucionais, infraconstitucionais e institucionais com o objetivo de dar forma prática ao programa de reformas.

Um programa reformador deve voltar-se também para a reforma das instituições sociais e à criação de novas instituições capazes de dar vazão às exigências de uma cidadania participativa. O papel do Ministério Público, dos órgãos e entidades de defesa do consumidor, o aparecimento de entidades não-governamentais que atuam em várias frentes, de entidades ambientalistas etc, representam sinais de alento e de revigoramento da sociedade civil. Mas estamos muito longe, ainda, de uma sociedade civil participativa, autônoma e de uma cidadania com direitos respeitados. É preciso enfatizar, portanto, a organização da sociedade civil e seu papel decisivo, inclusive, na reconstrução do Estado tendo em vista criar instituições capazes de garantir participação e direitos.

Qual democracia?

A generalização do sistema democrático de governo não impediu que se confrontassem duas concepções básicas de democracia. De um lado, o pensamento conservador e neoliberal, sustenta que o Estado democrático deve se restringir a funções mínimas, como a garantia da segurança, da propriedade, dos contratos e da liberdade. O mercado seria o lugar adequado para a alocação de rendas, recursos e investimentos. Nesse esquema, não cabem ao Estado funções garantidoras de direitos sociais ou trabalhistas e de busca da justiça social. Por outro lado, uma outra concepção de democracia sustenta que esta deve expressar determinado conteúdo substantivo relacionado às condições materiais de existência das pessoas.

Nas eleições de 98 estarão em confronto estas duas visões de democracia: o conjunto de forças centro-conservadoras que cercam a candidatura de Fernando Henrique, que procura afirmar uma idéia de democracia reduzindo-a a regras formais do jogo político; a candidatura Lula e a unidade das esquerda devem sustentar uma idéia de democracia entendida como reativação e ampliação da participação popular na vida política, social e econômica, significando, com isso, a garantia das condições necessárias para o bem-estar social, a afirmação da cidadania e a garantia de direitos sociais, individuais e humanos.

Democracia e os direitos sociais

Se a democracia diz respeito também às condições de vida material das pessoas, então a questão da garantia dos direitos sociais coloca-se no centro da disputa política em curso no Brasil. Os direitos sociais dizem respeito a um conjunto de necessidades e carecimentos humanos que se afirmaram na segunda metade do século XIX e ao longo de todo o século XX. Indivíduos passaram a entender ser legítimo reivindicar sua proteção e garantia junto ao Estado. A rigor, não há garantia de direitos sociais sem que o Estado cumpra um papel positivo, intervindo na organização social e econômica da sociedade, mas não de forma completa ou absoluta, como ocorreu nos países socialistas. Sem dúvida, a competição do mercado cumpre um papel estimulador das qualidades individuais e oxigena a criatividade e a eficiência. Mas, em termos de distribuição de rendas e de hierarquização de prioridades, o mercado provoca graves distorções porque suas orientações seguem princípios e interesses particulares. Sendo a democracia fundada também no valor da eqüidade, a organização política da sociedade deve intervir para corrigir as distorções do mercado.

Ao contrário dos direitos de liberdade, os direitos sociais não são iguais para todos, pois visam resolver os problemas da eqüidade e da justiça social numa sociedade econômica e socialmente desigual. Também, diferentemente dos direitos de liberdade, que se afirmam como garantias jurídicas formais, os direitos sociais se estabelecem como direitos materiais de cidadãos no desempenho de seus papéis específicos na sociedade. Os direitos sociais se desenvolveram a partir de movimentos que reivindicaram a terra para trabalhar, a proteção do trabalho contra o desemprego, a garantia da instrução contra o analfabetismo, a assistência para a velhice e a invalidez. Os direitos sociais não param de crescer: hoje se especificam como direitos das crianças, das mulheres, das minorias, dos deficientes, dos consumidores etc. Surgem também reivindicações de novos direitos: de viver num ambiente não poluído e direitos contra a manipulação do código genético. Alguns estudiosos consideram determinados direitos sociais imprescritíveis, permanentes, sem os quais não haveria garantia de uma sociedade democrática e livre. Trata-se do direito à alimentação, à habitação, à saúde e à educação, que constituem a condição básica do supremo direito: a vida. É imprescindível lutar contra o desmantelamento dos direitos trabalhistas e contra a precarização das relações de trabalho como aquela viabilizada pelo contrato temporário. É preciso buscar políticas positivas de emprego e encontrar forma de aliviar os custos da folha de pagamentos sem atingir direitos básicos.

Por uma esquerda democrática e reformadora

Ante o colapso do socialismo e a crise de referências da ideologia marxista é ainda possível postular uma política de esquerda? A social-democracia, na sua versão européia, cujo principal pilar de realizações era o Estado do Bem-Estar Social, pode servir como referência para um partido como o PT? Em que medida um programa de esquerda pode ainda se diferenciar de um programa liberal? A globalização e as novas tecnologias não teriam posto problemas comuns para muitos países e para deferentes partidos em cada país?

Estas e outras indagações estão no centro das perplexidades e das dúvidas que ainda povoam a militância de esquerda desde o choque provocado pelo desmoronamento do socialismo. A busca de novos parâmetros programáticos, de novos paradigmas teóricos e a redefinição de valores e objetivos tem sido uma constante em muitos partidos de esquerda de diversos países. Dos velhos partidos comunistas não sobrou praticamente nenhuma herança. O modelo guerrilheiro latino-americano e o modelo sandinista fracassaram. A social-democracia européia, após anos de indefinições e derrotas eleitorais está em franca ascensão. Sucesso teve também a longa transição do velho Partido Comunista Italiano para um novo partido de esquerda referenciado nos valores da democracia e do humanismo, o Partido Democrático de Esquerda (PDS). Na América do Sul, frentes políticas de esquerda, como as que se constituíram na Argentina e no Uruguai, se afirmam como alternativas viáveis aos programas neoliberais e conservadores. O próprio PT, pela sua originalidade, serve de referência a partidos de outros países, ainda que seja preciso reconhecer o impasse de definições e caminhos que precisa ser superado. O PDS italiano, as frentes de esquerda latino-americanas, a social-democracia européia e a própria história do PT fornecem experiências de acertos e fracassos que servem de baliza para a superação desse impasse.

Mas, o que significa ser de esquerda hoje? Temos insistido na idéia — apropriando-nos de uma afirmação do velho militante Apolônio de Carvalho — que a esquerda precisa ter a capacidade de mudar sem mudar de lado. Ou seja, ter como referência de ação a mudança das instituições econômicas, sociais e políticas visando criar novas condições de vida para os setores mais desamparados, desprotegidos e explorados da sociedade. A esquerda deve defender os que mais sofrem: os trabalhadores do campo e da cidade, os excluídos, as camadas médias e os discriminados. Evidentemente, as transformações da velha sociedade industrial proporcionadas pelas novas tecnologias, novas relações sociais, mudanças culturais etc, ampliaram questões e bandeiras de lutas que precisam ser assumidas pela esquerda.

A questão da igualdade, contudo, ainda é a que diferencia e especifica uma política de esquerda. Mas como entender a igualdade num mundo com tantas diferenças e com a preponderância da economia de mercado? Trata-se da igualdade entendida como um igualitarismo nivelador, preconizado pelo velho comunismo? Acreditamos que não. A igualdade não pode suprimir o pluralismo e a diversidade de culturas, religiões, concepções etc. Igualdade, nas condições do nosso tempo, é assimilada à eqüidade e à justiça.

A esquerda jamais será democrática, verdadeiramente igualitária se não partir do pressuposto de que o valor da liberdade deve se constituir no valor supremo de qualquer sistema político. A esquerda deve reconhecer o caráter conflitivo da natureza humana, o pluralismo de desejos, interesses, ideais e valores e a conseqüente expressão plural da vida política nas sociedades. A opção democrática da esquerda implica na adoção de mediações institucionais como forma essencial de equacionamento dos conflitos sociais e humanos. A luta nas instituições e pela mudança das instituições, porém, não anula a luta social legítima por reivindicações e mudanças. As grandes transformações históricas, aliás, ocorreram mediante a combinação de lutas sociais com lutas institucionais.

Uma agenda de reformas

Os últimos anos demonstram que, no final do milênio, o aumento da exclusão social é fenômeno marcante, decorrente da crise do Estado e do processo de globalização, que coincidem com um novo patamar tecnológico desorganizador, em grande medida, dos padrões de produção e de organização do trabalho e de suas representações. Esse fenômeno gera novas exigências de capacitação para ingresso no mercado de trabalho, aumento do desemprego, crescimento das ocupações autônomas, precarização das condições de trabalho, perda de direitos e enfraquecimento do movimento sindical.

Subjacente a esses fenômenos, colocou-se na ordem do dia a necessidade de redefinir o papel do Estado. O neoliberalismo expressa uma proposta programática que procura enfrentar a crise do Estado e a globalização através de um processo radical de desestatização e de desconstituição de direitos sociais remetendo as relações econômicas e trabalhistas para soluções de mercado. Nos últimos anos, os partidos conservadores e neoliberais fizeram um enorme esforço para levar adiante um processo de reformas com o objetivo de erguer um novo modelo de Estado: o chamado Estado mínimo.

Os partidos de esquerda, de modo geral, mostraram-se incapazes de apresentar uma alternativa consistente ao neoliberalismo. Não poucas vezes, apareceram como defensores do status quo e sustentadores do estatismo autárquico, ineficiente e corporativo. Sempre chamamos a atenção para a necessidade da esquerda e do PT apresentarem alternativas reformistas às reformas conservadoras do governo. A nossa desorientação, a timidez e a falta de objetivos nos jogaram para uma posição defensiva no período do governo FHC. Para que a esquerda se capacite a governar o país e vários estados ou a fazer uma oposição mais conseqüente será preciso que formule um projeto de reformas do Estado que o capacite a garantir estabilidade econômica com desenvolvimento sustentado, distribuição de renda e riqueza, garantia de direitos e da justiça e universalização da educação.

O Brasil ingressou nos anos 90 com vasta agenda a cumprir. No plano político-institucional apresentou-se a tarefa de concluir a institucionalização democrática decorrente das condições estabelecidas pela Constituição de 88, bem como corrigir os erros e insuficiências desta. A agenda centrou-se nas reformas constitucionais e institucionais como a reforma da Ordem Econômica, a reforma Administrativa, da Previdência, Tributária, do Judiciário, Reforma Política etc. Parte desta agenda foi cumprida, parte está a meio caminho e parte sequer entrou na ordem do dia. Muitas das propostas do governo, aprovadas, expressam uma concepção conservadora de desenvolvimento e excludente de direitos.

No plano econômico, a tarefa mais urgente que se apresentava na década de 90 era a do combate à inflação, um dos principais fatores de deterioração do poder aquisitivo das populações pobres. A estabilidade monetária revela-se um dos requisitos mais importantes na recomposição das condições para um novo crescimento econômico. No plano social, o combate à exclusão e uma política de emprego apresentam-se como tarefas prioritárias. O governo Collor expressa uma tentativa desastrada de dar resposta aos dois primeiros pontos da agenda dos anos 90. Os governos Itamar/FHC obtiveram sucesso parcial na tentativa de estabilização. O governo FHC, contudo, não responde às exigências e necessidades da agenda social. Somente um governo capaz de romper com as estruturas sociais e econômicas elitistas e conservadoras com base num programa reformador e segundo uma visão de desenvolvimento orientada pela eqüidade e respeito ao meio ambiente terá condições de superar as deficiências e as injustiças históricas de nosso país. A candidatura Lula, mais uma vez, expressa a torrente na qual desaguam as esperanças dessa possibilidade.

Certos de que a próxima legislatura do Congresso e o próximo governo serão ainda marcados pela polarização em torno das reformas, propomos que o novo mandato interfira e se empenhe na discussão e luta pela aprovação das seguintes propostas:

I - REFORMA TRIBUTÁRIA E FISCAL: visando redefinir o pacto federativo entre municípios, estados e união, responsabilidades e participação de cada esfera para com as políticas públicas e no bolo tributário. Deve também instituir a justiça tributária, uma vez que o peso da tributação cai hoje excessivamente sobre os assalariados e a classe média.

II - REFORMA POLÍTICA: com o objetivo de aprofundar o caráter democrático do Estado, destacando a restrição ao uso das medidas provisórias, aprovação de uma lei eleitoral permanente que institua a fidelidade partidária e limite do financiamento público das campanhas eleitorais, discussão do voto distrital misto e redefinição da representação dos estados na Câmara Federal.

III - REFORMA DO PARLAMENTO: visando dar eficácia e agilidade ao processo legislativo e recuperar prerrogativas do Congresso que foram delegadas a outras esferas do Poder Executivo. É fundamental também sustentar o fim da imunidade parlamentar para crimes comuns e a supressão do sigilo bancário para os detentores de mandatos eletivos.

IV - REFORMA DAS INSTITUIÇÕES MILITARES E DA SEGURANÇA PÚBLICA: neste ponto daremos continuidade ao trabalho desenvolvido, já que apresentamos uma emenda constitucional abrangente sobre o assunto. Tal emenda procura subordinar de forma definitiva o poder militar ao poder civil, modernizar e profissionalizar as Forças Armadas, criar o Ministério da Defesa e defender uma segurança pública desmilitarizada e concebida como um direito dos cidadãos.

V - REFORMA DO JUDICIÁRIO: continuar um trabalho já em curso com a apresentação da Emenda Constitucional que institui o controle externo do Judiciário, isto é, o controle administrativo e financeiro deste poder, tal como existe em relação ao Legislativo e ao Executivo. É preciso também instituir novas leis processuais e de execuções penais, com o fim de dar agilidade e eficiência à Justiça.

VI - INSTITUIÇÃO E GARANTIA DE DIREITOS: essa luta deve ser travada tanto nas reformas constituicionais como na legislação infraconstitucional. Combinada com a dos movimentos sociais, esta ação parlamentar para universalizar direitos é decisiva para constituição de uma sociedade democrática e justa.

Privatizações e Agências de Controle

As privatizações constituíram um importante aspecto da reforma do Estado e da reforma da Ordem Econômica encaminhadas pelo governo. Serviram também como atração de capitais externos e constituição de reservas monetárias. O modelo adotado de privatizações, no entanto, não foi o mais adequado para o país. Tratou-se de mera transferência patrimonial, os critérios de avaliação das empresas estão sob suspeição, houve má aplicação dos recursos arrecadados e o poder público não exigiu nenhuma contrapartida das empresas privatizadas.

Na área de prestação de serviços, seja por órgãos estatais ou empresas privadas, verifica-se um verdadeiro colapso. A rigor, toda a estrutura de serviços públicos nas esferas, municipal, estadual e federal está sucateada. A área da saúde é a face mais vergonhosa deste abandono, mostrando profundo desrespeito à cidadania e aos direitos.

A crise na prestação de serviços ocorre em duas frentes. Na frente que deve corresponder às atividades exclusivas do Estado __ como saúde, educação, assistência social, seguro desemprego, meio ambiente __ e na de bens e serviços para o mercado, que não necessariamente corresponde a atividades exclusivas do Estado, como infra-estrutura, energia, telecomunicações, transportes, mineração etc. Mas, se no segundo caso o Estado não precisa estar diretamente envolvido, pois pode conceder a prestação desses serviços ou agir em parceria com a iniciativa privada, não pode fugir de sua função reguladora e fiscalizadora. O modelo de privatização e de concessão de serviços adotado pelo governo está desmoronando exatamente porque não preservou para o poder público esta função inalienável.

Nas áreas dos antigos monopólios foram constituídas agências reguladoras como a Anatel, nas telecomunicações; a Aneel, na energia elétrica e a ANP no petróleo. O papel reservado a essas agências e a sua estrutura enfraquecem a atuação reguladora e fiscalizadora do Estado e as transformam numa espécie de balcão promíscuo de interesses públicos e privados. Outro grave erro no processo de privatizações consiste em que o Congresso não reservou para si nenhuma prerrogativa de legislar de forma geral sobre a prestação de serviços transferindo todo o poder para as agências.

Todo esse quadro indica a necessidade de se apresentar uma nova legislação com o objetivo de:

recuperar as prerrogativas do Congresso de legislar sobre prestações de serviços;
estabelecer novos parâmetros da relação entre poder público e concessionárias de serviços, visando a) garantia da qualidade dos serviços, b) obrigatoriedade de investimentos das concessionárias, c) garantia de acesso universal aos bens e serviços, d) prerrogativa de interferência do poder público na definição das políticas tarifárias, e) espaço para fiscalização e cobrança de eficiência por parte dos consumidores e, f) regras e mecanismos duros de fiscalização com a facilitação legal da cassação das concessões em caso de quebra de contrato;
propor nova legislação sobre a estrutura das agências conferindo-lhes caráter absolutamente público e dotando-as de mecanismos fiscalizadores eficazes;
propor nova legislação sobre privatizações com exigências de contrapartidas como, por exemplo, a que determina que toda empresa que compra um setor lucrativo dos serviços se obrigue a investir naqueles não lucrativos;
propor severa legislação antimonopolista visando salvaguardar os interesses dos cidadãos-consumidores.

Na questão das privatizações, não está em jogo um princípio, mas a forma e o modelo como foram feitas, o preço implicado no repasse do patrimônio, a relação entre poder público e setor privado que explora serviços, as garantias e as contrapartidas constituintes das salvaguardas da sociedade. Não se trata de defender uma reestatização das empresas privatizadas, mas de propor uma auditagem das privatizações para verificar se o interesse público não foi lesado com as empresas subavaliadas e os riscos que correm os recursos públicos que financiaram as privatizações, principalmente os do BNDES.

Síntese do perfil político do autal mandato

A seguir, resumimos os pontos de atuação que marcam o perfil político do atual mandato:

I - Mandato de posição política e de opinião: uma das principais características do mandato está no fato de que sempre procuramos nos posicionar de forma pública sobre as disputas políticas na sociedade, no Congresso e no PT, manifestando opiniões sobre temas conjunturais e gerais. Procuramos expressar um tipo de representação relacionada a interesses políticos gerais da sociedade, considerando a existência da opinião pública como um dos fatos mais marcantes da democracia moderna. Não há uma efetiva presença política junto à opinião pública sem o uso dos veículos de comunicação de massa: jornais, rádio e TV. Por isso, o mandato investiu deliberadamente para ocupar espaços, de formas variadas, nos meios de comunicação. Também fez-se presente junto à opinião pública através de debates diretos com setores e movimentos da sociedade, desde trabalhadores até empresários, desde estudantes até movimentos específicos.

II - Reforma da democracia e das instituições: nossa perspectiva reformadora começou a se afirmar na Assembléia Nacional Constituinte através da apresentação de propostas e da disputa em plenário. Ela se consolidou na defesa da necessidade da revisão constitucional e na defesa do sistema parlamentarista de governo. Posteriormente, com o advento do governo Fernando Henrique e da reforma constitucional, sustentamos a necessidade do PT disputar os rumos da reforma mediante a apresentação de propostas alternativas. Adotamos algumas iniciativas próprias apresentando propostas de reforma do Congresso e do Judiciário, de revisão da representação dos estados na Câmara Federal, de reforma na área de segurança e Forças Armadas e da Lei dos Direitos Autorais, etc.

III - Credibilidade e eficiência na atuação parlamentar: outra marca importante do mandato. Como se sabe, o Parlamento é uma instituição desgastada aos olhos da opinião pública. Além de conferir credibilidade ao mandato através de uma atuação responsável, procuramos sempre, por meio da crítica ao Congresso e apresentação de propostas de reforma do mesmo, resgatar e valorizar a atuação parlamentar.

IV - Abordagem de temas relacionados aos direitos e ao comportamento: característica do mandato que vem se afirmando desde a época da Constituinte com a emenda sobre a liberdade de orientação sexual. Posteriormente, o mandato foi pioneiro na apresentação de um projeto pela legalização do aborto. A defesa dos Direitos Humanos e dos direitos sociais foi tema recorrente de minha atuação.

Principais projetos e emendas constitucionais apresentados pelo mandato

1 - Projeto de Lei nº 2.805, de 1997: Regulamenta a atividade de cartórios. Apresentado em março/97, em breve deve entrar em tramitação na CCJ. O relator é o dep. Vilmar Rocha.

2 - Proposta de Emenda Constitucional: Dispõe sobre a unificação das atribuições do Conselho de Defesa Nacional e do Conselho da República. Aguarda tramitação na CCJ.

3 - Proposta de Emenda Constitucional nº 197/95: Modifica o artigo 45 da Constituição Federal que trata da representação dos Estados na Câmara dos Deputados. Encontra-se em tramitação em Comissão Especial.

4 - Projeto de lei nº 2.951/92: Dispõe sobre direitos autorais e regulamenta os incisos XXVII e XXVIII do artigo 5º da Constituição. Uma nova Lei de Direitos Autorais foi aprovado e sancionada contendo partes substantivas do projeto que apresentamos.

5 - Projeto de Lei n º 03.609/93: Dispõe sobre opção de interrupção da gravidez. Anexado ao Projeto 1.135/91 do dep. Eduardo Jorge. Encontra-se em tramitação na Comissão de Seguridade Social e Família. Relator: Deputada Jandira Feghali.

6 - Proposta de Emenda Constitucional nº 112/95: Institui o Sistema de Controle do Poder Judiciário. Anexado à PEC 96/92 do dep. Hélio Bicudo. A PEC já recebeu parecer favorável do relator, Jairo Carneiro, e está em tramitação em Comissão Especial.

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