1982-2002

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Teses para o XI Encontro Nacional do PT - 1997

APROFUNDAR A DEMOCRACIA: TAREFA HISTÓRICA DO PT

Apresentação

Durante os dois anos de gestão do atual Diretório Nacional, eleito no X Encontro, ficou ainda mais evidente para o conjunto do PT a necessidade de uma ampla reforma no partido. As eleições de 94 consumaram uma situação na qual se patenteia a distância entre as exigências da realidade e a capacidade do partido para oferecer respostas. Os problemas localizam-se em todos os planos, da esfera da formulação política à organizativa, sem falar de graves manifestações no terreno da ética.

Torna-se até mesmo difícil estabelecer hierarquias. De alguma maneira precisaremos cuidar de tudo, da ação política imediata e da reflexão estratégica, da reforma dos Estatutos e da redefinição do nosso pacto ético, das relações com os movimentos sociais e da modernização de nossas estruturas burocráticas. Existe uma profunda interdependência entre todos estes aspectos, concorrendo cada um para agravar os demais.

Será exigida, portanto, uma clara noção de processo, já que nem daria para cuidar de tudo ao mesmo tempo, e não se muda uma instituição enraizada socialmente como o PT facilmente, ou por meio de simples atos de vontade. Um único Encontro não será suficiente, serão necessários muitos debates e seminários, o problema das comunicações internas terá que ser resolvido como preliminar das preliminares etc., etc.

Algumas respostas seremos incapazes de oferecer por nossos próprios meios, mesmo porque a crise da esquerda não é patrimônio nacional. É um fenômeno global que se acelerou com a atual revolução técnico-cienetífica, a queda do muro de Berlim, o fim da URSS e das "repúblicas populares" da Europa e com a aceleração do processo de globalização. A superação de uma crise dessas proporções dependerá de um acúmulo de conquistas também global, ou pelo menos em diferentes países.

O esforço da Democracia Radical no XI Encontro estará voltado em duas direções: em contribuir para que o atual bloco majoritário no PT, do qual a DR participa, se mantenha nesta condição e se fortaleça e em oferecer contribuições para o debate que acrescentem alguma coisa ao pensamento e à solução dos problemas do partido e do país.

Quanto aos temas da organização partidária, enfatizamos a proposta de reelaboração dos Estatutos do PT que subscrevemos juntamente com a "Articulação Unidade na Luta". E quanto ao balanço do DN, apoiamos integralmente o texto editado em nome do "campo majoritário". Assumimos também a proposta de Congresso constante da tese da "Unidade na Luta".

I. A economia na agenda da transição política

1. 1974-1994 são os marcos do período histórico da transição democrática. A grosso modo, esta começa com a primeira crise do petróleo, que mina as bases do "milagre econômico" e da própria ditadura, e termina com a eleição de FHC. Os anos 70 assinalam o início das transformações profundas que o capitalismo vem experimentando em plano mundial ao longo dos anos 80 e 90, o chamado processo de globalização. Fundiram-se aí várias crises: a crise do "milagre", a crise da ditadura, a crise do modelo industrial baseado na substituição de importações, a crise do Estado e a crise do nacional-desenvolvimentismo - ideologia e padrão de organização institucional que deu racionalidade à economia brasileira dos anos 30 aos 70. Daí o caráter amplo da agenda da transição: institucionalização democrática; enfrentamento da crise econômica, com destaque para o combate à inflação; pauta da reforma econômica, centrada na estabilização monetária, na reforma do Estado e na abertura da economia; e a agenda social.

2. O PT nasceu nas condições históricas da transição, sua cultura é por isso, em grande medida, cultura da transição. A sua experiência política forjou-se, na prática, sobre dois grandes pilares: a. o tema da democracia, sob os signos da resistência à ditadura e da institucionalização democrática, cujo momento decisivo foi a Constituinte; e b. o tema da resistência aos efeitos da crise inflacionária. Lembremos que as greves do ABC, das quais emergiria o novo sindicalismo e que deram impulso ao nascimento do PT, foram realizadas sob a bandeira da reposição das perdas salariais provocadas pela inflação.

3. A contribuição marcante do PT neste período histórico situou-se principalmente no terreno da democracia: nosso partido incorporou à política grandes massas trabalhadoras da cidade e do campo, favoreceu à auto-organização de amplos setores sociais, introduziu práticas novas e subversivas na administração pública de municípios e estados, trouxe a questão social para o primeiro plano da agenda nacional, formulou propostas criativas, voltadas para a radicalização da democracia, em particular durante o processo constituinte e na gestão de alguns municípios.

4. Mas a situação exigia ainda mais do PT. A crise do paradigma nacional-desenvolvimentista significava a desorganização dos próprios pressupostos racionais sob os quais o Brasil, ao longo de quatro décadas, alcançara a condição de país industrial moderno. Este fato colocava na ordem-do-dia a necessidade de uma mudança estratégica, que implicava na concepção de um novo pensamento econômico, na reformulação das políticas de governo e na redefinição dos próprios papéis institucionais - do Estado, das empresas, do capital estrangeiro, dos sindicatos etc. E a referência socialista não nos oferecia, neste particular, nenhuma alternativa consistente.

5. Enquanto isso, o debate econômico extrapolava os círculos dos especialistas e passava, cada vez mais, ao primeiro plano da disputa política. Derrotar a inflação de forma consistente e duradoura, em particular, passou a ser aspiração profunda da grande maioria da sociedade. Os trabalhadores viviam a experiência de uma luta incessante pela reposição das perdas salariais, numa corrida na qual os preços iam sempre à frente e mais rápido do que os salários. A grande massa dos chamados excluídos, que sequer tinham acesso aos mecanismos de indexação, eram expropriadas dia a dia pelo imposto inflacionário. Violento processo de concentração de renda beneficiava principalmente aos grupos parasitários que operavam na ciranda financeira, na qual a atrofia dos investimentos produtivos combinava-se com o agigantamento artificial de bancos e especuladores. Vencer a inflação transformou-se em problema nacional de primeira ordem, requisito prévio para qualquer projeto de retomada do crescimento e de resposta para a agenda social.

6. Ser ou não capaz de combater a inflação - passou a decidir-se aí a sorte dos governos, a partir de Figueiredo. O fracasso de Sarney foi consumado na derrota do Cruzado, o de Collor, na aventura do plano que levou seu nome. O sucesso do Real é a evidência de sucesso do governo FHC e, mais que isso, tornou-se a ponta de lança de um projeto e de uma nova hegemonia.

II. O PT e o tema da inflação

7. Não nos parece verdadeira a avaliação, que se ouve freqüentemente, de que o PT carecia de uma formulação a respeito do tema da inflação por ocasião das disputas presidenciais de 89 e 94.

8. Coerentemente com a tradição do pensamento de esquerda, o PT tendeu sempre, em seus documentos oficiais, a associar a inflação a causas de natureza estrutural. Mais precisamente, a ver na inflação um problema cujas origens situavam-se na própria natureza no capitalismo em nosso país. Ora era enfatizado o papel da desigualdade da correlação de forças entre as classes sociais na luta pela renda, ora o caráter monopolista da economia, ora a dependência externa cuja expressão mais evidente era o problema da dívida, ora a alta concentração da propriedade fundiária, ora as tendências do capitalismo para a especulação financeira.

9. O documento que formula as bases para o programa de governo de 1994 tende a atribuir a crise inflacionária a uma combinação de todos estes fatores estruturais do capitalismo brasileiro.

10. Independentemente de uma avaliação sobre a justeza ou não deste diagnóstico, pode-se considerar, sem sombra de dúvida, que a principal decorrência dele consistiu no fato de que o PT tendeu sempre a desconsiderar a inflação como problema particular passível de ser atacado por meio de uma terapia específica. Se na raiz dela havia um problema estrutural, a solução estava, logicamente, em realizar as reformas estruturais.

11. O mesmo documento de 1994 a que nos referimos é taxativo ao afirmar: "a política econômica que será adotada pelo Governo Democrático Popular partirá da rejeição à idéia gradualista de que primeiro estabiliza-se a economia, depois retoma-se o crescimento e por último realizam-se as reformas estruturais. Não haverá estabilização nem retomada do crescimento, nos termos de um projeto democrático e popular, sem reformas estruturais".

12. Pode-se concluir que o PT concebia o combate à inflação como um processo mais ou menos longo cuja rapidez e consistência dependeria do sucesso da luta pelas reformas estruturais.

13. Duas conclusões podem ser extraídas destas considerações: primeiro, que a reação do partido quando da implantação do Plano Real foi perfeitamente lógica, dado o fato de que o Real se caracterizava como um plano de estabilização que não era precedido por nenhuma reforma estrutural; e segundo, que a concepção do PT a respeito das causas da inflação e da maneira de combatê-las afeta ainda hoje a conduta do partido na oposição ao governo FHC. Precisando melhor estes erros, vale registrar que experiências mais recentes de estabilização de algumas economias mostram ser possível estabilizar sem a retomada prévia do crescimento e, mais que isso, estabilizar para depois realizar as reformas estruturais e só por último promover a retomada da economia.

14. A estabilidade da moeda deve ser encarada como um dos requisitos mais importantes para a modernização do país e promoção da cidadania. A inflação inviabiliza não só os projetos conservadores, ela é também uma inimiga da democracia. É radicalmente funcional para a concentração de renda, fato do qual o povo brasileiro tem hoje uma clara percepção. Apostar no fracasso do Real, mesmo disfarçadamente - ao invés de propor medidas corretivas - não nos ajudaria a ganhar credibilidade na sociedade, especialmente num terreno em que estamos particularmente desacreditados.

Governo FHC e agenda do futuro

15. A eleição de FHC, mais do que a escolha de um novo Presidente, significou a opção por um projeto para o país. Implicou na constituição de uma nova hegemonia, ponto-chave para definição do processo de transição. Este é um dado fundamental para se pensar o futuro do PT.

16. O projeto do governo FHC baseia-se em quatro pontos: estabilização da economia, reengenharia do Estado, abertura da economia sem a contrapartida de uma política industrial e programa amplo de privatização. A vitória deste projeto caracteriza um desfecho conservador para tantos anos de transição. Seu pressuposto é uma atitude passiva em face do processo de globalização.

17. Pode-se assinalar conseqüências graves para o país, como o agravamento do dualismo da economia, expresso na presença de um setor econômico restrito internacionalizado e altamente competitivo ao lado de uma vasta economia atrasada e desintegrada do sistema global; o aumento da concentração de riquezas a par com o aprofundamento e ampliação da exclusão social; o retrocesso quanto à efetividade da democracia.

18. São freqüentes na esquerda dúvidas a respeito da viabilidade deste projeto. De fato, pode-se localizar pontos importantes, e imediatos, de vulnerabilidade. A rigidez da taxa de câmbio, espécie de dogma da nova tecnocracia palaciana, vem fragilizando perigosamente as contas externas. Se esta situação continua, crescerá a necessidade de entradas maciças de capitais externos, via empréstimos, especulação financeira, financiamentos etc, o que tornará o Brasil cada vez mais exposto aos humores dos capitais especulativos e, portanto, cada vez mais vulnerável. Combinada com as necessidades de grandes desembolsos para saldar compromissos da dívida externa, esta situação se constitui numa ameaça grave às reservas nacionais em dólar e à própria credibilidade externa do país. Mas, talvez, o dado mais preocupante esteja na deterioração das contas públicas, na gravíssima explosão da dívida interna por conta principalmente das altas taxas de juros ditadas pela necessidade de atração de capitais externos..

19. É preciso considerar, no entanto, que a economia não é um mecanismo que se autogoverne em termos absolutos. A política a influencia muitas vezes decisivamente. Logo, o dado mais importante é o fato de que FHC detém hoje uma ampla hegemonia política, que combina adesão social, articulação empresarial dentro e fora do país, suporte de mídia, base política dentro do Congresso e apoio internacional. Esta realidade, se não é suficiente para evitar um ataque especulativo ao Real, pode não só facilitar a protelação de uma crise mais aguda como evitar que uma tal situação implique numa bancarrota completa do projeto hegemônico.

20. Seria um erro o PT basear sua política na hipótese de fracasso do governo. Mesmo porque derrota do governo nem sempre significa vitória da oposição, como mostra o próprio exemplo recente do México. O Brasil está vivendo um período histórico de profundas transformações políticas, econômicas, culturais, institucionais etc. Já é um país muito diferente daquele em que o PT nasceu e se formou como grande partido de esquerda. Qual a agenda deste outro Brasil? Qual a posição do PT a respeito desta nova agenda? A importância da resposta a estas e outras questões, para a qual será necessário um grande esforço coletivo, baseia-se no entendimento de que o PT deve fazer oposição combinando denúncia e mobilização com negociação em torno de propostas alternativas ao projeto do governo.

IV. Nova ordem e mercado oligopolizado

21. O final do século assinala uma vitória do mercado como grande instituição reguladora da economia em escala global. A tentativa de uma parte da esquerda de substituir totalmente as relações mercantis pelo planejamento estatal fracassou. Coincidindo com a drástica elevação da produtividade do trabalho proporcionada pela revolução tecnológica, o Estado do Bem Estar entrou em crise, as economias planificadas foram ao colapso e a velha ideologia liberal ganhou força.

22. No discurso, observa-se tendência generalizada à afirmação do primado da competição econômica, da livre concorrência como premissa fundamental para a modernização da economia, para a multiplicação das oportunidades e até mesmo para a conquista do bem-estar social. Na prática, simultânea às iniciativas no sentido da desregulamentação, da privatização e da abertura comercial, o que vem prevalecendo, no entanto, é o oligopólio econômico, a realidade de um mercado aberto mas crescentemente cartelizado. O processo de globalização vem se realizando sob a hegemonia dos grupos transnacionais.

23. A crítica ao governo FHC deve situar-se num ponto decisivo: o caráter passivo da sua política em face da globalização; a submissão de seu governo à dinâmica imposta pelos oligopólios à economia internacional; a sua recusa a colocar sobre a mesa a contrapartida dos interesses nacionais em oposição às linhas de conduta estabelecidas a partir dos centros dirigentes da economia mundial. Enfim, a adesão às premissas do neoliberalismo, com todas as conseqüências previsíveis.

24. Uma atitude possível para a esquerda é a de simplesmente resistir. Mas esta política, que aliás vem prevalecendo no Brasil, tem eficácia limitada. Primeiro, porque facilita aos adversários nos identificarem com a defesa de um status quo (corporações diversas, burocracia estatal etc.) com o qual não temos nada ou quase nada a ver, e assim apresentarem-se eles mesmos como paladinos do progresso, das reformas, da modernização. Na disputa ideológica, a configuração deste quadro tende a ser fatal para nós. Segundo, porque esta postura defensiva dificulta a formulação de projetos alternativos ao neoliberalismo, já que o passado não oferece uma base na qual nos apoiarmos para pensar o futuro. A dimensão de resistência da nossa política precisa inserir-se no ponto de vista de um projeto cujas premissas são objeto de discussão na esquerda de vários países.

Ponto crítico para um novo projeto da esquerda

25. Grande parte da esquerda, a comunista em particular, sempre teve em relação ao mercado uma disposição francamente negativa. Esta recusa fundamenta-se na evidência de que, espontaneamente, o mercado tende a se constituir em fonte de desigualdade e concentração de riquezas. Não por acaso uma parte da esquerda situava a idéia da supressão total das relações mercantis no centro de seu horizonte utópico.

26. Legítima e eticamente justificada, esta idéia teria que se haver com o fato de que uma instituição desta natureza deve ser avaliada, de um ponto de vista de esquerda, não apenas pela sua "aptidão" para a igualdade e a justiça, mas igualmente pela sua funcionalidade econômica. É bem verdade que este tipo de regulação absolutizada da economia através do planejamento estatal foi justificada, durante algumas décadas, também pela sua suposta superioridade em termos de eficácia. O que ficou historicamente comprovado, no entanto, é que este tipo de regulação é irracional tanto do ponto de vista da sua funcionalidade como da sua capacidade para efetivar o valor da igualdade. O planejamento estatal de tipo soviético ruiu, em grande medida, porque, incompatível com a democracia, se constituiu em gerador de privilégios, injustiças, desigualdade.

27. O PT nunca se identificou com as vertentes estatistas stritu sensu. Nasceu como partido heterodoxo, voltado mais para a sociedade do que para o Estado e identificado com a democracia, não com a ditadura. No entanto, é igualmente verdadeiro que jamais tivemos uma posição claramente definida e fundamentada a respeito de muitas questões, especialmente no terreno da economia. Assim como é verdade que prevalece no PT uma predisposição utópica no sentido da negação e até mesmo da supressão das relações mercantis, ainda que difusamente e sem a afirmação de uma alternativa.

28. A constituição de um projeto da esquerda para o nosso tempo passa pela solução desse problema decisivo. E para isto não servem as invenções abstratas, ainda que haja sempre lugar para a inventividade. O mercado afirmou-se como instituição útil e necessária na regulação da economia, e esta não é uma questão a respeito da qual o querer ou o não querer leve a algum lugar. Trata-se de um dado objetivo que talvez possa ser explicado pelo fato de que, se não é apto para gerar igualdade, o mercado revelou-se eficaz para alocar recursos e fazer circular a riqueza. Impõe-se a necessidade de, por meio da ação indutora, regulamentadora e fiscalizadora do Estado e da sociedade civil, estabelecer um contrapeso social aos aspectos negativos do mercado.

29. A experiência do Brasil combina o pior dos dois mundos. À tendência objetiva do mercado no sentido da desigualdade social somou-se a presença de um Estado intervencionista de sinal trocado. Ou seja, um Estado completamente omisso no que se refere à defesa dos trabalhadores, dos consumidores, das empresas não oligopolistas, dos cidadãos, e extremamente ativo no que diz respeito à proteção de oligopólios e cartéis. Basta notar que a função precípua das empresas estatais dentro do paradigma nacional-desenvolvimentista foi exatamente esta: servir como suporte infra-estrutural aos monopólios privados nacionais e multinacionais. Tudo feito, ao longo de décadas, com o suporte das baionetas, das constituições outorgadas, dos atos institucionais, dos paus-de-arara. O caráter quase facínora do capitalismo brasileiro, a tragédia humana da concentração de renda, o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres, tudo isto está assim perfeitamente explicado. O neoliberalismo daqui tem um antepassado à altura!

30. Lutar pela igualdade é lutar contra esta tradição. Chegamos assim ao ponto: a questão da democracia. Esta será sempre superficial, epidérmica, enquanto subsistir, sob a capa das instituições democráticas ditas formais, a dura realidade dos abismos sociais. Constatação que coloca diretamente em pauta o tema da cidadania, dos direitos individuais e sociais, por sua vez inseparável da democracia econômica. Esta aliás, já assumida pelo PT, no I Congresso, sob a nome de mercado socialmente orientado. E que implica num enfrentamento simultâneo tanto com o projeto neoliberal quanto com a herança histórica a que acabamos de aludir. Sem falar no fato de que há muito que realizar, muito que mudar, para que tenhamos instituições democráticas dignas do nome no plano político. Trata-se, em síntese, do seguinte: a tarefa de formular o projeto alternativo petista é essencialmente a tarefa de formular, de modo mais profundo e sistemático, a nossa concepção de democracia.

VI. A questão democrática

31. A este respeito, teremos pouco a acrescentar neste momento àquilo que muitos petistas já sabem. É que não basta saber quando se trata de um partido, é preciso transformar o que se sabe em deliberação coletiva, linha política. E viabilizar uma ação na direção indicada.

32. O Brasil é um país epidermicamente democrático. Não poderia ser de outro modo já que pesa sobre nós uma longa tradição histórica autoritária, com a qual a sociedade jamais fez um ajuste de contas. A chamada transição democrática não foi outra coisa senão um processo arrastado de soluções pela metade, adaptações e constrangimentos de toda ordem. E do ponto de vista social significou pouca coisa, já que as estruturas econômicas injustas e concentradoras de renda permaneceram intactas. Com o agravante de que, coincidindo com a crise inflacionária e do paradigma nacional-desenvolvimentista, a transição foi também um período de empobrecimento geral da grande maioria da população.

33. A rigor não há vários problemas, um econômico, outro social, outro político-institucional etc. Há apenas um, o da efetivação da democracia, que não existe na forma de fragmentos. Quando, por exemplo, se tem o direito de voto mas 30 milhões estão fora do mercado, do emprego e do consumo, outros tantos são analfabetos, a maioria é discriminada pela condição racial ou sexual, os meios de comunicação são concentrados nas mãos de uns poucos capitalistas, os próprios processos eleitorais são distorcidos por mil artifícios, inexistem mecanismos de controle mínimo dos eleitos pelos eleitores, o Poder Judiciário só funciona para os ricos, o Executivo domina o Legislativo, e assim por diante. Esta democracia, em suma, não é.

34. Partido que disponha de uma visão articulada e de propostas, também articuladas, para enfrentar este problema, um tal partido estará dotado de um projeto histórico para o Brasil. Mas para isto este partido terá que conceber o econômico, o político, o cultural, o social, o educacional, o científico-tecnológico etc. como um único problema com várias facetas, cada uma com seu lugar no todo, e cada uma devendo ser atacada para que o todo possa ser resolvido. Isto é óbvio, mas precisa ser dito, porque a nossa percepção da realidade é algo muito parecido com uma superposição caótica de fragmentos. Quando fala o economista, o problema é a taxa de juros ou de câmbio; quando fala o parlamentar, o problema é a conjuntura da disputa institucional; quando fala o sindicalista, o problema é a dificuldade de mobilização; quando fala o educador, o problema é o declínio da escola pública; quando fala o prefeito, o problema é a falta de verbas para investimento etc., etc. Todos falam de um problema e sobre este o partido delibera, enquanto o problema mesmo adormece, "implícito", na reflexão coletiva.

VII. Sínteses para um projeto

35. A título de concretização do nosso pensamento, sem nenhuma pretensão de formular aqui um programa, poderíamos, na linha de radicalização da democracia, enumerar três núcleos polarizadores do nosso projeto:

Democratização do poder político

reforma do sistema partidário e eleitoral: fidelidade partidária, restrição aos partidos de aluguel, financiamento público de campanhas eleitorais e limitação e controle de gastos nas mesmas, regras mais democráticas sobre o papel dos institutos de pesquisa e da mídia nas campanhas etc.;

democratização do acesso aos meios de comunicação e regulamentação democrática do rádio e da TV comunitárias;

reforma do Judiciário visando torná-lo eficiente e facilmente acessível ao cidadão comum;

por ocasião do plebiscito parlamentarismo versus presidencialismo, o PT posicionou-se a respeito desta questão. O debate que então fizemos estava impregnado pelo imediatismo da disputa presidencial, numa conjuntura em que as pesquisas de opinião davam Lula como favorito. No entanto, para efeito da formulação do nosso projeto, será natural que, no momento oportuno, voltemos a nos indagar sobre o tema sistema de governo, agora em termos distintos, com enfoque estratégico e não fundamentalmente conjuntural;

no item da democratização do poder e da política, a experiência petista da participação popular no âmbito municipal - por exemplo, na esfera da gestão do orçamento - precisa ser valorizada e sistematizada tendo em vista a criação de uma ampla esfera pública não-estatal, uma nova institucionalidade que só pode ser concebida coerentemente e viabilizada de forma duradoura se combinada com a reforma democrática das instituições vigentes.

Democratização econômica e social

política de emprego e salário orientada para a distribuição de renda;

democratização do acesso à propriedade urbana e rural;

legislação antimonopolista e mecanismos de restrição aos oligopólios, defesa do consumidor etc.;

programa de reforma do Estado com o objetivo de torná-lo apto para a defesa dos interesses econômicos dos cidadãos;

programa de institucionalização de mecanismos para o controle público não-estatal da economia, dirigido aos movimentos sociais e à sociedade civil;

tomar a questão educacional como frente prioritária para a promoção da cidadania e para a modernização econômica, política e cultural do país;

programas para a instituição de sistemas públicos básicos e universais de saúde, assistência e previdência social;

Integração externa dinâmica e soberana

faz tempo a economia brasileira é uma economia internacionalizada. A chamada globalização vem radicalizar esta realidade. Espontaneamente, tende a acentuar-se a presença e o poder dos monopólios, o que precisa ser contrabalançado pela ação econômica do Estado e da sociedade civil. Isto pressupõe uma redefinição da estrutura do Estado para que possa cumprir papel decisivo de indução, regulamentação e fiscalização da economia - o que demanda, entre outras, uma ampla reforma tributária e fiscal;

a abertura da economia precisa combinar-se com uma política industrial que assuma o desafio de compatibilizar o desenvolvimento da competitividade da economia nacional com a ampliação da capacidade de emprego;

o Mercosul pode se afirmar como plataforma decisiva para a potencialização da nossa economia e como suporte fundamental na negociação com os países e blocos mais desenvolvidos;

à iniciativa internacional no plano econômico deve somar-se a iniciativa política, do Estado e da sociedade civil, enquanto contrapeso aos monopólios econômicos no processo de globalização. Exemplos como o do Mercocidades, reunindo cidades do Mercosul numa articulação supranacional, precisam ser valorizados e seguidos pelos atores sociais.

VIII. Política de alianças

36. As eleições de 98 recolocarão na pauta o tema da política de alianças para o partido deliberar. Mais uma vez estaremos nos posicionando em função do fato imediato. Tamanha é a fluidez do sistema político brasileiro que torna-se difícil tratar de alianças em termos estratégicos. Foi assim, de eleição em eleição, que o PT foi firmando uma tradição de alianças, não destituída de muitos problemas, no chamado campo da esquerda.

37. Além desta questão, de como manter e reforçar a unidade da esquerda, existe ainda um ponto decisivo, o da relação entre a esquerda e o centro. A virada estratégica contra nós se deu neste ponto, quando o centro, representado pelo PSDB, optou por compor-se com a direita. Temos portanto um tema fundamental da nossa reflexão estratégica: como resolver o problema da relação entre o PT e o centro sob o governo FHC? É claro, nem todo o centro migrou em 94, "apenas" sua parte mais importante, restando, disputável, um conjunto de forças regionais localizadas que não foram totalmente absorvidas pelo governo. Tratar deste assunto, permanentemente, é enfrentar a questão da viabilidade ou não da nossa pretensão à hegemonia.

38. Para 98 precisaremos antes formular melhor nosso discurso, preparando o partido para um enfrentamento qualificado com o governo FHC, e estabelecer nossos objetivos: reeditar a disputa centrada na Presidência? Priorizar governos estaduais e Congresso Nacional? Quais governos estaduais?

39. Nos dois últimos anos estabeleceu-se uma polarização entre todo o campo que apóia o governo e a oposição de esquerda, PDT inclusive. A idéia da candidatura presidencial única das oposições - que devemos pleitear seja do PT - deve consistir em linha principal da nossa intervenção. E numa negociação global que inclua apoios de outros partidos a nomes do PT e apoios nossos a nomes de outros partidos para governos estaduais, de modo a assegurar vitórias em diversos estados. Tudo isso combinado com o objetivo de aumentar significativamente as nossas bancadas, assim como à dos demais partidos oposicionistas, na Câmara e no Senado.

40. Mas para tanto será necessário ainda estabelecer alianças também com forças centristas regionais situadas fora do campo governista e disputar setores desse próprio campo que tenham algum grau de discordância com a estratégia imposta pelo situacionismo. Com flexibilidade, de acordo com a situação, seja em torno de candidatos próprios seja de nomes de outros partidos. Estas forças centristas passíveis de serem disputadas situam-se principalmente no PMDB e no PSDB. Em síntese, trata-se de ampliar ao máximo nosso leque de alianças sem, contudo, esmaecer a linha de demarcação e polarização com o governo. Ao contrário, o objetivo desta política consiste acima de tudo em fortalecer o conjunto da oposição.

São Paulo, agosto de 1997

Assinam pela Democracia Radical - Tendência Interna do PT

01. Adalberto Vieira - DR-CE

02. Ben Hur - Deputado Estadual/DR-MS

03. Carlos de Almeida - Vereador - DR-SP

04. Carlito Merss - Dep. Estadual/Líder Bancada/Ex. Estadual - PR

05. Cleide Fontes - Vereadora/DR-CE

06. Edir Veiga - DR-PA

07. Eduardo Jorge - Deputado Federal

08. Eni Fernandes - Vereadora/DR-SP

09. Erotides Borges - Ex. Estadual - GO

10. Francisco Campos - Ex. Estadual - SP

11. Henrique Pacheco - Vereador - DR-SP

12. Ismael Silva - Dep. Estadual - SE

13. Jânio Leal Silva - DR-SP

14. Joaquim cartaxo - DR-CE

15. José Genoino - Ex. Nacional/Dep. Federal

16. José Nobre Guimarães - DN/Pres./DR-CE

17. José Teixeira - Ex. Estadual - CE

18. Luciano Cartaxo - Vereador - PB

14. Luiz Cesar - Vereador/Vice-Pres. DR- Goiânia

19. Marcia Barral - DR-SP

20. Marcos Rolim - Dep. Estadual - RS

21. Maria Osmarina Silva - Senadora - AC/DN

22. Maurício Nobre - DR-CE

23. Paulo Pimenta - Ex. Estadual - RS

21. Raimundo Nonato Pinheiro - DR-CE

24. Roberto Gouveia - Deputado Estadual - SP/DN

25. Sônia Souza Braga - Ex. Estadual - CE

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