1982-2002

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Docs. Partidários


Por uma alternativa democrática e reformadora ao neoliberalismo - 1993

1 - Reconstruir a esquerda como alternativa política

A Humanidade chega ao final do segundo milênio da Era cristã num mundo marcado por incertezas, paradoxos e contrastes. Mais do que nunca as energias anímicas das possibilidades luminosas para alguns e da degradação e do desespero para muitos convivem em polaridades inconciliáveis nas várias faces dos assuntos humanos. A equação não parece mais ser "civilização ou barbárie". Civilização e barbárie estão destinadas, não a se excluir, mas a conviver num mundo fragmentado em todos os sentidos. De um lado, estão os detentores de direitos, cidadania, segurança, bem-estar, riqueza, os desfrutadores da técnica, do saber, dos bens de consumo globalizados etc. De outro, estão os deserdados do bem-estar, os que ficam à margem da estrada do progresso, os sem-direitos, os sem-cidadania, os sem-emprego, os sem-capacidade de consumo, os sem-conhecimento etc. Em suma, todos aqueles seres humanos que vivem os horrores da miséria, da fome, da exclusão, da violência, da falta de oportunidades e da ausência de esperança.

A esquerda chega ao término do século XX acumulando derrotas em várias frentes. Na frente teórica, por conta da inconsistência de predições, dogmas e utopias de seus principais representantes intelectuais. Na frente, política pelo fracasso dos Estados socialistas-comunistas em viabilizarem formas sociais mais avançadas do que aquelas que se constituíram no capitalismo europeu-americano-japonês. Na frente ideológica-moral, pelo fato de muitos Estados e partidos de esquerda terem usado métodos autoritários/totalitários inviabilizando um projeto de socialismo democrático. Não raras vezes, os métodos dos Estados comunistas produziram milhões de mortes, prisões, desterros e banimentos. Após esses fracassos e derrotas e da grande ofensiva liberal, que consagra o capitalismo como o sistema mais desenvolvido e civilizado da humanidade, a esquerda vive uma fase de reconstrução na tentativa de constituir-se como uma alternativa democrática e reformadora. A imensa tarefa de reconstrução não será fácil e demandará décadas. Somente os partidos e lideranças que souberem ter paciência e denodo poderão estar destinados a escrever novas páginas de glórias para a esquerda política. É preciso reconhecer que em ambos os sistemas que se confrontaram no século XX, capitalismo e comunismo, nem tudo foi civilização e nem tudo foi barbárie. No mundo não desenvolvido, porém, o capitalismo deixou um legado de exclusão, de exploração e de indignidades. A esquerda precisa encontrar outra alternativa, que se diferencie tanto do capitalismo como do comunismo autoritário. Alternativa democrática, humanística, libertária e pacífica.

A esquerda jamais será democrática, e também não será verdadeiramente igualitária, se não partir do pressuposto de que o ideal da liberdade deve se constituir no valor supremo de qualquer sistema político. Isto posto, a esquerda deve reconhecer o caráter conflitivo da natureza humana, o pluralismo de desejos, interesses, ideais, valores, etc. e a consequente expressão plural da vida política das sociedades. A opção democrática da esquerda implica que se adote as mediações institucionais como forma essencial de equacionamento dos conflitos sociais humanos. Deste ponto de vista, a paz deve ser um valor irrenunciável da esquerda para que a humanidade siga a seta do desenvolvimento civilizatório. A busca da igualdade e a solidariedade são os valores que diferenciam a esquerda dos outros agrupamentos político-ideológicos. São estes valores, situados no horizonte almejável, que alimentam as nossas lutas políticas e sociais cotidianas.

2 - Por um novo programa estratégico

A estratégica de ação da esquerda deve ser reformadora e transformadora do status quo das sociedades. Revoluções, certamente, deverão acontecer. As revoluções, no entanto, nunca foram e jamais serão produtos de estratégias de partidos ou de quem quer que seja. São acontecimentos históricos resultantes da combinação de uma série de circunstâncias e contingências que nenhum partido pode produzir ou dominar.

A ação estratégica de qualquer partido se consubstancia no seu programa político que, necessariamente, tem um alcance limitado no tempo. Pelo fato da ação política comportar múltiplos agentes, a aplicação de um programa partidário apresenta, sempre, um resultado discrepante em relação às intenções e metas originais. Por serem as instituições do Estado a forma mais rápida e eficaz para implementar mudanças, a essência da ação de um partido de esquerda deve ser no sentido de conquistar, democraticamente, o poder político. O programa de um partido de esquerda deve ser realista. Ou seja, deve procurar apresentar soluções viáveis e eficazes aos problemas concretos da sociedade invertendo as prioridades em favor dos setores menos favorecidos. Complementarmente, os partidos de esquerda devem agir no sentido de apoiar e incentivar as organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais.

O programa democrático e reformador da esquerda deve ter os seguintes eixos orientadores: a) ação voltada para a integração à cidadania e para a garantia de direitos dos setores excluídos da sociedade; b) democratização radical das instituições políticas ampliando a participação dos cidadãos nas decisões e aumentando a esfera de controle da sociedade civil sobre o Estado; c) radicalização da democracia social com a ampliação da garantia dos direitos sociais e da participação dos cidadãos nos fóruns de decisão e de aplicação e garantia de direitos; d) ampliação dos direitos econômicos dos trabalhadores, com uma maior participação nos lucros, uma maior participação dos trabalhadores nas decisões das unidades produtivas e nas instâncias decisórias das políticas industriais/agrárias/serviços e de emprego; e) ampliação dos direitos e garantias dos consumidores, com o incremento de suas organizações de defesa; f) ampliação das políticas de desenvolvimento auto-sustentado, que levem em conta as necessidades de um meio ambiente saudável, a justiça social e o distributivismo de renda e riqueza; g) resgate dos valores do humanismo e da solidariedade, com a defesa e promoção dos direitos humanos e das práticas e organizações civis de ajuda e apoio aos movimentos sociais; h) defesa de uma ordem mundial despolarizada onde a competição econômica selvagem ceda lugar à interdependência e colaboração entre países e, principalmente, a ajuda dos países ricos aos países pobres para que estes tenham acesso à tecnologia e ao conhecimento permitindo o desenvolvimento auto-sustentado; i) fortalecimento e democratização das instituições mundiais de segurança, de comércio, de defesa do meio ambiente e ampliação do desarmamento e fortalecimento dos mecanismos de arbitragem pacífica dos conflitos territoriais, étnicos, religiosos civis etc.

Por um estado eficiente

Os fatos dos últimos anos demonstram como tendência determinante para o final do milênio o aumento da exclusão social como fenômeno constitutivo decorrente da crise do Welfare State e da afirmação do processo de globalização. A crise do Estado e a globalização coincidem com um novo patamar tecnológico que, em grande medida, desorganiza os padrões de produção e de organização do trabalho e de suas representações inerentes ao capitalismo do século XX. Esses fenômenos têm gerado novas exigências de capacitação para o ingresso no mercado de trabalho, o aumento do desemprego, crescimento das ocupações autônomas, precarização das condições de trabalho, enfraquecimento do movimento sindical etc.. Subjacente a esses fenômenos colocou-se na ordem do dia, por toda a parte, a necessidade de redefinir o papel do Estado. O neoliberalismo expressa uma proposta programática que procura enfrentar a crise do Estado e a globalização através de um radical processo de desestatização da economia, de desconstituição de direitos sociais remetendo as relações econômicas e de capital/trabalho para soluções de mercado. A esquerda não pode aceitar este tipo de solução. O Estado mínimo representa a negação do papel civilizatório do poder público da comunidade. O Estado máximo tornou-se sinônimo de burocracia e ineficiência. A esquerda deve buscar um novo modelo de estado, que tenha na pretação de serviços à sociedade e na garantia de direitos e cidadania o seu conteúdo essencial.

Se é verdade que o mercado energiza a produtividade e o progresso econômico e tecnológico pela competição, o fato é que ele gera também consequências sociais e desigualdades distributivas nefastas. Desde os primórdios da civilização o Estado foi o principal instrumento de arbitragem e mediação dos conflitos humanos. Em vários momentos da História, mas principalmente no século XX, o Estado se instituiu como instância de retificação das consequências negativas do mercado promovendo o bem-estar e garantindo uma maior justiça social. Este papel positivo e civilizatório do Estado é irrenunciável e não pode ser abandonado. Esta é a principal razão da inaceitabilidade do projeto neoliberal e da necessidade de combatê-lo. Como é sabido, o neoliberalismo tenta reduzir o Estado às suas funções mínimas de segurança, ordem jurídica, educação básica etc. Cabe à esquerda formular um outro projeto de relação Estado/sociedade garantidor do desenvolvimento e da qualidade de vida, da abundância e da eqüidade. Isto só é possível pela via de um mercado socialmente regulado. Nem o Estado e nem o mercado são fins em si, como pretendem, de um lado, determinados representantes da esquerda, e de outro, os neoliberais. Ambos devem ser vistos como instrumentos para constituir o bem-estar, a civilização, o humanismo e o universalismo de direitos. Um novo modelo de desenvolvimento orientado pelo combate radical à exclusão deve ser o centro programático do PT. Esse modelo implica o acesso ao conhecimento para todos, condição indispensável à cidadania, e a definição de parâmetros que garantam equilíbrios sociais, ambientais e econômicos.

A democratização do Estado

O Brasil ingressa na década de 90 com uma vasta agenda a cumprir. No plano político-institucional apresentou-se a tarefa de concluir a institucionalização democrática decorrente das condições estabelecidas pela Constituição de 88, bem como, corrigir-lhe os erros e as insuficiências. O centro dessa agenda situa-se nas reformas constitucionais e institucionais como a reforma da Ordem Econômica, a reforma do Estado, da Previdência, Tributária, do Judiciário, Política etc. No plano econômico a principal tarefa a ser enfrentada é a do combate à inflação, principal fator de deterioração das rendas. A estabilidade monetária mostra-se um dos requisitos mais importantes na recomposição das condições para um novo crescimento econômico. No plano social, o combate à exclusão e uma política de emprego apresentam-se como tarefas prioritárias. O governo Collor expressa uma tentativa desastrada de dar resposta aos dois primeiros pontos da agenda dos anos 90. Os governos Itamar/Fernando Henrique têm sucesso parcial na resposta ao primeiro ponto e sucesso significativo na resposta ao desafio da estabilização. O governo FHC, contudo, não responde às exigências e necessidades da agenda social e do crescimento econômico com distribuição de renda.

Uma das principais razões da defensiva do PT e da oposição em geral, diz respeito ao fato de que, a rigor, a esquerda ignorou a agenda dos anos 90. Num primeiro momento o PT manteve uma postura obstrucionista em relação as reformas. Quando decidiu disputar seu rumo o fez com atraso e, por consequência, em posição desfavorável. Quanto à estabilização econômica e ao combate a inflação, o PT não conseguiu apresentar uma alternativa consistente. Na agenda social, o PT foi incapaz de apresentar alternativas que tivessem repercussão na sociedade. Nesta área coube ao MST chamar a atenção, a partir do problema específico da reforma agrária, para o drama das exclusão social no País. Deste diagnóstico cabe concluir que: Primeiro, as reformas institucionais são imprescindíveis para aprofundar o grau de democratização do Estado, para torná-lo mais eficiente e para fortalecê-lo como instrumento de garantia do bem-estar, das políticas públicas como saúde, educação e habitação e para a garantia da segurança. Não se trata de operar por dentro das propostas do governo, mas de opor-lhe alternativas que visualizem o confronto entre o elenco de reformas conservadoras com o elenco de reformas democratizadoras e progressistas. A falência dos Estados, a crise na segurança pública e da previdência, a falência da saúde pública, a crise da federação etc. são testemunhas de que o governo escolheu prioridades que se voltam contra o povo. Mas o PT não terá sucesso se não opor alternativas tanto ao conservadorismo do governo como ao status quo ineficiente e a serviço dos privilégios das elites. Segundo, o PT deve alargar o leque das reformas institucionais exigindo a correção do sistema representativo na Câmara, a regulamentação das MPs, fidelidade partidária, uma lei eleitoral democrática que elimine o peso econômico nas eleições e a democratização dos meios de comunicação. A democratização radical da política requer a ampliação dos mecanismos de consulta popular como o referendo e o plebiscito. O Estado não será democratizado sem uma reforma do Judiciário que garanta o seu controle pela sociedade e o acesso de todos a uma Justiça mais justa e eficaz. Democratizar o Estado e a sociedade significa também garantir as reivindicações das maiorias e minorias discriminadas como as mulheres, os negros, os índios etc.; significa garantir os direitos trabalhistas que impeçam a "flexibilização", que transforma cidadãos e não-cidadãos e significa reforças a negociação coletiva, a autonomia e a representatividade dos sindicatos e a reforma agrária. O PT, assim, deve garantir uma vigorosa ação nas instituições visando democratizá-las radicalmente e propondo políticas públicas ao mesmo tempo em que mantém uma atividade incansável junto aos movimentos populares, os verdadeiros alicerces da conquista de direitos e cidadania.

Resistência popular ao neoliberalismo

A aprovação da emenda da reeleição representa a tentativa da consolidação de um projeto hegemônico de longo prazo sustentado por uma ampla aliança de centro-direita, representada pelo governo FHC. A síntese do projeto do governo FHC se expressa na reforma do Estado, na abertura da economia e no programa de privatização. No âmbito externo a principal aposta do governo é no fortalecimento do Mercosul como forma de reposicionamento do Brasil em face aos outros blocos econômicos e às economias mais desenvolvidas. A rigor, a reforma do Estado e o processo de privatização encaminhados pelo governo decretam o fim do modelo estatal e desenvolvimentista inaugurado na década de 30. Na economia, o modelo do nacional-desenvolvimentismo, que articula a implementação da industrialização e da infra-estrutura a partir dos esforços do Estado, está esgotado. No setor público, o modelo autárquico-corportativo-burocrático apresenta-se ineficaz e instituidor de privilégios inaceitáveis. A esquerda não pode apresentar-se como defensora deste status quo do Estado brasileiro que só esteve a serviço das elites. O projeto do governo FHC representa uma resposta conservadora às necessidades de mudança de modelo. As principais consequências desse projeto são o fraco desempenho da economia, a deterioração das contas públicas e externas, o desemprego e a manutenção da exclusão social.

É na esfera política e social, no entanto, onde o governo vem enfrentando dificuldades crescentes. Na área política, por exemplo, a retórica autoritária do governo, que procura definir-se como o dono da verdade desqualificando qualquer oposição, criticando o Congresso e o Judiciário, abre espaço para a denúncia da prepotência governamental. A base de sustentação do governo é outra área de dificuldades por conta dos atritos e da disputa de espaço. Os recentes episódios envolvendo as críticas do ministro Sérgio Motta a setores da base de sustentação e a reação do líder do governo na Câmara, Luís Eduardo Magalhães, dão a medida das dificuldades do governo com sua base. A própria autoridade do presidente saiu enfraquecida. À medida em que a disputa eleitoral se aproxima os conflitos na base de sustentação devem aumentar. A marca conservadora deste governo é inquestionável. Ela se traduz no fato de que o seu comando político é exercido pelo PFL. O PSDB se tornou um partido coadjuvante do conservadorismo.

A marcha do MST a Brasília, as comemorações do primeiro de maio, o apitaço da oposição no Congresso, as manifestações dos sem-teto, dos sem-terra, as greves das polícias, os protestos de 25 de julho (Abra o Olho, Brasil) são fatos que marcam uma oposição mais contundente ao governo. Os escândalos dos precatórios e da compra de votos na aprovação da reeleição e as nomeações fisiológicas em ministérios e em outros cargos federais também são fatores de desgastes. A grave crise social já faz parte da consciência da sociedade. A estabilidade econômica não foi capaz de criar melhores condições de vida. Pelo contrário, na medida em que o governo se omitiu nas políticas sociais e não implementou nenhuma medida distributivista de renda, os ganhos iniciais que os setores de mais baixa renda obtiveram com o fim do imposto inflacionário já se desfizeram no ar, conforme mostram dados do DIEESE. Articular uma vigorosa oposição política apresentado alternativas consistentes com um vigoroso movimento social por terra, moradia, mais e melhores empregos, recuperação das perdas salariais e por investimentos em políticas sociais é caminho do fortalecimento da oposição ao conservadorismo neoliberal e da construção de uma alternativa política de esquerda.

José Genoino — Deputado Federal PT/SP.

OBS.: Este texto expressa o conteúdo de parte das teses da "Democracia Radical" apresentadas no 12º Encontro Estadual do PT, em São Paulo.

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