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Docs. Partidários


Por uma democracia republicana Tese para o II Congresso do PT - 1999

(Versão Final)

Projeto de Programa para o II Congresso do Partido dos Trabalhadores

Apesar de ostentar-se como a oitava economia do mundo, cinco séculos depois do descobrimento, o Brasil ainda não pode reivindicar-se como um país efetivamente democrático. Pesquisa recente da ONU coloca-o no rol dos piores do mundo quanto ao desenvolvimento humano, o 79º entre 170 países pesquisados, com mais de 30 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. Na América Latina, está atrás de Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia, Venezuela, Cuba etc. É um dos últimos em gastos com saúde e educação. Há aqui o maior abismo entre os vinte por cento mais ricos e os vinte por cento mais pobres em termos de renda.

Em seu II Congresso, por meio da elaboração coletiva, o Partido dos Trabalhadores deverá avançar, em sua formulação programática, mais além do que já propôs e vem realizando para enfrentar esta situação. A conquista da cidadania para todos não será tarefa fácil, mesmo porque o drama social do Brasil repousa em raízes históricas profundas.

I. Herança patriarcal e autoritária

As sombras de um passado remoto, passado colonial, monárquico, escravista e patriarcal, estendem-se até o presente e ameaçam nosso futuro. Desde o início da colonização, o Brasil tem sido prisioneiro de uma tradição conservadora, um modo estatal de constituição da economia, uma forma autoritária de gestão política e administrativa, uma justiça e uma polícia instituídas para proteger os poderosos e reprimir os fracos e um método de afirmação da sociedade no qual a aristocratização e a exclusão social são faces da mesma moeda.

A monarquia patrimonial portuguesa impôs ao Brasil um regime econômico escravista e instituições políticas e administrativas estranhas e opressoras. Durante o período colonial, a par com momentos de insubordinação, o povo não se engajou em grandes empreendimentos libertadores. Os movimentos políticos de caráter popular, em geral, ou não foram suficientemente fortes para derrotar as manobras dos adversários visando isolá-los ou não foram suficientemente consistentes para evitar que fossem cooptados. Em ambos os casos, para se tornarem vitoriosos, capazes de imprimir aos momentos de mudança a marca de sua radicalidade. Este é um traço marcante de toda a nossa história.

A Independência, obra quase exclusiva da elite governante, substituiu a dependência de Portugal pela da Inglaterra. A Abolição, resultado principalmente da pressão internacional que submeteu o governo monárquico, em que pese o papel das lutas de negros e setores liberais internos, manteve as terras nas mãos dos mesmos senhores e o negro escravo por outras formas. A proclamação da República, golpe militar assistido por uma massa popular quase indiferente, instituiu uma ditadura armada. Da Colônia à República, passando pelo Império, as transformações políticas não tiveram um sentido republicano, voltado para a constituição do caráter público das instituições e de um ordenamento social e econômico justo e eqüitativo. A rigor, a nossa evolução política é marcada por um conteúdo autoritário e anti-repúblicano. A exclusão social e política afirmou-se como uma herança que adentrou a República e o século XX, até os dias de hoje.

Ainda no final do século passado, o Brasil não conhecia o trabalho livre nem a livre iniciativa econômica nem uma indústria privada orientada pela competição. Nos anos 1930 deste século, sequer existia aqui um mercado nacional digno do nome. Desde os tempos coloniais, a economia foi orientada pelo Estado para atender aos interesses de oligarquias patrimoniais.

Era o domínio de uma elite formada pela aliança entre os grandes senhores de terras e um estamento burocrático, civil e militar, combinando a produção monocultora com os interesses comerciais e fiscais do reino metropolitano. O viés fiscal e mercantil sempre a predominar sobre o interesse social e sobre as atividades produtivas independentes. A lei do "quero-e-mando" dos funcionários da coroa, dos governadores de províncias e dos grandes senhores, sempre a prevalecer sobre qualquer traço de justiça igualitária. As instituições administrativas, na Colônia como no Império, reduzidas às funções de controle e arrecadação fiscal, jamais a atividades voltadas para o bem-estar da sociedade.

Submetido à dependência comercial e financeira da Inglaterra, o Império herdou o modo de operação da velha matriz lusitana. Com a República adveio a política dos governadores, das oligarquias regionais que mantiveram o Estado como instrumento de privilégios. Os órgãos legislativos, sejam as câmaras municipais da Colônia, seja o parlamento imperial, seja o Congresso Nacional da República Velha, jamais tiveram o caráter de instituições representativas do povo. Funcionaram como nichos de articulação de interesses dos poderosos e casas de subserviência aos executivos. A própria Constituição republicana de 1891 foi cópia mal feita e inadequada da Constituição norte-americana. Os partidos políticos da República não passaram de congregações facciosas destinadas a dar sustentação ao governo e a ordenar minimamente as disputas de poder entre as elites para definir quem levaria a parte maior no botim dos recursos públicos. Jamais se constituíram como autênticos partidos, organizadores ou representantes políticos de interesses sociais. Quanto à justiça, não passava de simulacro.

Se nos estados predominava o poder das oligarquias locais, o governo federal transformou-se no espaço dos acordos intra-elites. A agricultura cafeeira, que implicou numa mudança da velha forma escravista de cultivo da grande lavoura, não propiciou o desenvolvimento de uma economia livre e competitiva. Ao contrário, inaugurou uma nova prática, que subsiste até hoje, na relação entre Estado e elites econômicas: a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. Desde então os interesses das elites econômicas passaram a ser confundidos com os chamados "interesses nacionais".

O peso dessa tradição histórica secular foi determinante para a via e o caráter da modernização capitalista do Brasil.

II. Capitalismo estatal e exclusão social

A Revolução de 1930, que não teve no povo um agente ativo autônomo, objetivou equacionar o método da disputa política entre as elites sem contrariar os privilégios das oligarquias. Seu líder, Getúlio Vargas, fora Ministro da Fazenda de Whashington Luís e pontificava como chefe da oligarquia gaúcha. A Aliança Liberal, agregando segmentos das elites despregados do setor cafeeiro, não exprimia um projeto nacional ligado à nascente burguesia industrial ou à classe média e aos trabalhadores. E o incipiente estatuto democratizador por ela legado foi logo sufocado pelo golpe palaciano do Estado Novo. A industrialização, os direitos trabalhistas e a organização sindical nascem e se afirmam como filhos do Estado - Sindicatos e CLT, cópias de modelos fascistas, destinados a cooptar os trabalhadores, e não a capacitá-los na luta por seus direitos.

A ditadura Vargas reafirmará o caráter anti-republicano e patrimonialista do Estado, agora como patrocinador de um capitalismo oligárquico e politicamente protegido. Amplia-se a intervenção do Estado na economia por meio de um aparato de instituições e fundos especiais, subsídios vários, num sistema brutal de privatização dos recursos e do patrimônio públicos. Nascem as empresas estatais em setores como mineração, siderurgia, petróleo etc, como suportes estratégicos para os oligopólios privados nacionais e internacionais. Este capitalismo, em parte estatal, em parte protegido pelo Estado, marcará todo o processo de desenvolvimento industrial do século XX, de Vargas aos nossos dias, passando por JK e pelo regime militar. Nele, temas democráticos, como Reforma Agrária, por exemplo, continuaram proibidos. É o que se convencionou chamar de nacional-desenvolvimentismo, cuja face política denominou-se populismo - fusão de autoritarismo com agregação popular a partir do Estado. O fisiologismo e a corrupção institucionalizada, criando fortunas e alimentando a subserviência dos políticos, eram subprodutos naturais desse sistema.

Trata-se de um capitalismo sem riscos que, numa economia fechada, mantém a drenagem dos recursos públicos para uma minoria privilegiada, concentrando renda e riqueza. À sombra das empresas estatais, uma burocracia estamental ascendente vai agregando privilégios para si mesma ao longo de sua carreira. Será uma das principais implementadoras da interface entre o setor público e o setor privado, segundo os interesses deste último e dela própria.

Conforme a tradição, o chamado processo de redemocratização, em 1944-1945, terá como desfecho uma espécie de golpe militar liderado pelos generais Dutra e Góes Monteiro, figuras proeminentes do Estado Novo. Os partidos mais importantes, que irão pontificar no novo período democrático - PTB, PSD e UDN - nascem a partir de incubadoras do Estado. Ter-se-á uma democracia efêmera e limitada, uma liberdade eleitoral e partidária restritiva e um contínuo aperfeiçamento do Estado segundo suas funções historicamente estabelecidas. Prevalece o chamado presidencialismo "imperial", no qual as decisões principais centram-se no Executivo, subsidiado pelo aval de um Legislativo quase sempre corrompido por esquemas fisiológicos e pela chancela de um Judiciário submisso.

A implantação da indústria automobilística, no governo JK, é paradigmática do nacional-desenvolvimentismo: ocorreu sob os auspícios do Estado que, em função dela, arcou com a criação de toda uma rede de infraestrutura – siderurgia, porto, estradas, petróleo, eletricidade etc – e com todo um sistema de subsídios. De tal sorte que o recente episódio envolvendo a Ford na Bahia não passa da reiteração de um vício. Sob a ditadura militar de 1964, aprofundou-se ainda mais este caráter estatal do capitalismo brasileiro. A ditadura representou uma continuidade de nossa tradição política conservadora e autoritária, que não tem sido opção exclusiva dos militares, mas de significativos segmentos das elites econômicas e de outros setores sociais. O expressivo apoio civil foi decisivo para a viabilização do golpe de 1964.

Em que pese o efetivo engajamento do povo na campanha das diretas, a redemocratização nos anos 1980 é ilustrativa da nossa tradição conservadora. Esta tradição foi reiterada por uma composição entre forças do regime militar e setores da oposição para afiançar a transição controlada, via Colégio Eleitoral, sem rupturas profundas com a ordem que sucumbia. Com exceção do PT, os principais partidos que daí emergem - PMDB, PFL e PPB - são produtos de arranjos a partir da ARENA e do MDB, criados pela ditadura. O novo sistema partidário dificultará a definição política dos interesses sociais e comprometerá a própria governabilidade. Cria situações que os governos conservadores, como o atual, tentam contornar com a arma do fisiologismo, dilapidando recursos públicos, desfigurando ainda mais os partidos e subordinando o Congresso.

Com a redemocratização, inaugura-se a era dos Planos Econômicos voltados para combater a inflação. Trata-se de intervenções estatais macroeconômicas que definem perdedores e ganhadores, ao cabo das quais a contabilização das perdas pesa principalmente sobre os mais pobres, enquanto os ganhos deslocam-se para os segmentos que têm acesso aos governantes da ocasião. Entre os ganhadores, o setor financeiro é o mais beneficiado.

A Constituinte produziu um estatuto confuso e manteve as premissas do capitalismo estatal. O seu maior feito foi garantir os direitos individuais ligados às liberdades democráticas. Mas constitucionalizou os direitos sociais, como se a letra da lei pudesse mudar a realidade de uma sociedade sem direitos efetivos e sem cidadania. No plano político, reforçou as prerrogativas do presidente da República, enfraquecendo as do Congresso, e manteve a representação dos estados na Câmara distorcida, tal como estabelecera o Pacote de Abril do general Geisel. O Judiciário também foi conservado como manda a tradição: um poder antidemocrático, sem controle, berçário de privilégios, e uma justiça lenta, ineficaz, feita para punir os pobres e proteger os ricos.

Nos anos 1990, tem início a reforma neoliberal, primeiro com Collor e depois com Fernando Henrique Cardoso. O núcleo central dessa reforma é o processo de privatização, que traz um elemento de ruptura com a tradição do capitalismo estatal e outro de continuidade. O aspecto de ruptura está no fato de que o Estado será praticamente retirado de sua função empresarial. O de continuidade desdobra-se nos seguintes vetores: a) o Estado passa a exercer a gestão macroeconômica sem transparência e numa relação subordinada com o capital financeiro, o que fica explícito nas políticas de câmbio e juros e na proteção do Banco Central a bancos privados; b) o Estado continua a patrocinar o surgimento ou fortalecimento de grupos empresariais, através de incentivos fiscais e empréstimos subsidiados, via BNDES e Banco do Brasil, ou de um processo de privatização que recusa a democratização do capital e orienta-se para determinados grupos; c) o Estado assume formalmente o papel de regulação e fiscalização sobre empresas em áreas de serviço público privatizado, mas o que prevalece é uma relação de promiscuidade entre agências reguladoras frágeis e o capital privado, como se observa na área de telefonia.

O fato de o próprio Estado financiar a maior parte das privatizações evidencia que o capitalismo de Estado continua uma realidade viva. A simbiose público-privado, definidora dos privilégios dos grupos econômicos e financeiros que serão alavancados, manifesta-se como um traço cultural arraigado na política brasileira. O próprio presidente da República, através do poder que as medidas provisórias lhe conferem, pode definir os beneficiários do capitalismo de Estado.

O desemprego, o empobrecimento da classe média, o aumento da violência urbana e rural etc são as outras faces dessa moeda.

Em suma, a despeito da imagem de modernidade, de promotor da superação histórica da "Era Vargas" que tenta vender, às vésperas do século XXI, Fernando Henrique Cardoso reproduz os mesmos procedimentos predatórios que caracterizaram secularmente as práticas políticas e administrativas da elite brasileira. E por via de conseqüência, mantém o Brasil nos marcos do sistema oligárquico que sempre o submeteu. Sistema que é ainda mais fortalecido pela lógica oligopolista e financeira do processo de globalização, perante o qual o atual governo tem adotado como regra de conduta a rendição pura e simples.

III. Estorvo à iniciativa econômica popular

As condições estruturais da sociedade brasileira restringem as oportunidades para a grande maioria da população, transformando em falácia a apologia da livre iniciativa, que os ideólogos neoliberais não cansam de apregoar. A propriedade agrária é de tal modo concentrada que reivindicar o acesso à terra é um ato subversivo. E quando grandes massas de pessoas, desempregadas ou que jamais tiveram um emprego formal, procuram estabelecer seus próprios negócios, deparam-se com restrições institucionais de toda ordem. A iniciativa econômica popular, frente às estruturas oligarquizadas e na ausência de programas governamentais de caráter democrático, transforma-se em fator de expansão incessante da economia informal.

Um cipoal de leis e exigências burocráticas transforma a criação ou legalização de uma empresa, por menor que seja, em verdadeira prova de resistência. Alimentadas por uma malha de regulamentos, floresceram no Brasil máquinas de corrupção que vão desde o pequeno fiscal municipal que extorque camelôs até o governador que, em nome da criação de empregos, concede vantagens escandalosas a uma montadora de automóveis. Governos que não investem em transporte de massas reprimem "perueiros" para beneficiar empresários de ônibus, seus financiadores de campanha, com o prêmio do mercado cativo e do capitalismo sem concorrência.

Os milhões de micro-empresários que atuam fora da lei não o fazem por livre opção, o Estado é que os obrigou a isso. A informalidade de um negócio é sinônimo de marginalidade, exclusão, não-cidadania. Por conta dela, proliferam as empresas sem endereço, sem conta bancária, sem aceso a crédito, à mercê de agiotas, sem relações normais com fornecedores e clientes, sem deveres mas também sem direitos. Ao invés de intervir no mercado para garantir a concorrência, o Estado o faz para inibi-la, em favor do privilégio. De todo o mercado nacional, o Estado só reconhece uma parte, excluindo o resto, que se calcula em mais da metade.

No Brasil, tolos são os que trabalham, poupam e produzem. O mercado de capitais é território exclusivo dos especuladores. A falta de transparência e a vulnerabilidade aos negócios obscuro ou até mesmo ilícitos inviabilizam-no enquanto alternativa de investimento para o pequeno poupador. A este não resta senão a via do consumo irracional, já que as demais formas de poupança estão expostas a riscos de toda ordem. Os governos não só não estimulam a poupança interna como submetem freqüentemente o pequeno poupador a formas disfarçadas e, às vezes, ostensivas de confisco, além de expô-lo a políticas macroeconômicas francamente desestimulantes.

O sistema financeiro que, até recentemente, abarrotou seus cofres com o benefício da correção monetária numa economia hiper-inflacionada, hoje farta-se com papéis do governo premiados por taxas de juros estratosféricas. No Brasil, banqueiro não tem vocação para o risco, para o financiamento via empréstimo, mas para o conforto do super-lucro parasitário, líquido e certo. Na verdade, todo o sistema produtivo e comercial paga caro por isso, o que vem sendo amplamente atestado por todos os indicadores de atividade econômica. Sem contar que a irracionalidade do sistema tributário transformou o contribuinte que não sonega impostos, trabalhador ou empresário, em mantenedor, sem contrapartida, do parasitismo estatal.

III. Democracia como princípio Neste final de século, o sistema democrático de governo vem se afirmando em quase todos os países. Mas a democracia não tem o mesmo significado para todos, nem na sua forma nem no seu conteúdo. Alguns países a adotam com elevado grau de liberdade; outros instituem regras democráticas de disputa política, mas com restrições significativas às liberdades. Para uns, a democracia não deve interferir nas relações sociais e econômicas; para outros, ela deve garantir o bem-estar e a eqüidade. A elite brasileira não está nem entre os primeiros nem entre os segundos.

A liberdade é o valor supremo da democracia. Historicamente, ela germinou com as aspirações humanas à liberdade de pensamento, de consciência, da pessoa, liberdades religiosa e civis para, finalmente, consagrar-se como liberdade política, entendida como liberdade de participação igual para todos nos assuntos públicos. A liberdade representa hoje, em termos políticos e civis, a garantia de direitos fundamentais imprescritíveis e não passíveis de supressão.

Mas sem qualidade de vida razoável, grupos sociais e indivíduos não têm capacidade assegurada de desfrutar dos direitos de liberdade. É por isso que partidos de esquerda como o PT lutam por uma sociedade que proporcione as condições materiais necessárias para que todos os indivíduos e grupos sejam de fato livres. Trata-se de buscar equilíbrio econômico e material, condição de acesso a bens mais amplos, como ensino, cultura etc.

Temos claro que será impossível garantir o bem-estar às custas da violação das liberdades. A justiça, em sentido amplo, não pode sacrificar a liberdade de poucos em nome do bem-estar de muitos, nem o bem-estar de muitos em nome da liberdade de todos. A justiça deve ser o valor maior que oriente as instituições políticas e sociais do sistema democrático de governo. E se eventualmente as instituições não servem a este objetivo, transformá-las, aprofundando o seu caráter democrático e republicano, torna-se a tarefa central de um partido de esquerda.

A pluralidade é pressuposto da democracia. O caráter plural da vida política nas sociedades fundamenta-se na diversidade de desejos, interesses, ideais, valores e opiniões inerente à própria natureza humana. As ditaduras, quer se reivindiquem de direita ou de "esquerda", podem quando muito transmitir temporariamente uma impressão de homogeneidade de opções sociais. E se esta impressão é alcançada pela força, significa que a diversidade está sendo simplesmente reprimida. Por isso é que os projetos antidemocráticos, invariavelmente, estão condenados ao fracasso, cedo ou tarde.

Para o Partido dos Trabalhadores, a democracia é programa e princípio, meio e fim.

IV. Diretrizes programáticas

O PT, partido popular, de massas e de esquerda não integrado ao sistema tradicional de poder, desde o seu nascimento, há 20 anos, se propôs a contribuir para a transformação do Brasil. Não poderia ser de outro modo, já que o PT emergiu da luta dos trabalhadores e dos movimentos sociais disposto a representar politicamente interesses bem definidos. E continua como um partido que amadurece na luta institucional, construindo reputação na administração pública e no parlamento, sem abandonar as lutas na sociedade. Partido que aprende a fazer alianças com outras forças políticas e sociais sem subordinar-se nem perder sua identidade e autonomia.

Com o PT, criou-se a possibilidade de ruptura com a tradição histórica brasileira de "mudança por acordo das elites para nada mudar". Por sua representatividade social, sua força política, e pela consistência de sua identidade, o PT credencia-se como alternativa real para a transformação do Brasil por via popular. Em outras palavras, para a ruptura com o caráter autoritário, oligárquico, patrimonialista e concentrador de renda e riqueza da sociedade brasileira.

O ideário do PT, compromissado com a democracia em sentido amplo, desdobra-se na luta pela afirmação da cidadania, pelo bem-estar econômico e pela igualdade social, pelo respeito à diferença, contra todo e qualquer tipo de discriminação, e pela defesa do meio-ambiente, segundo a consigna do desenvolvimento sustentado. Em nossa opinião, estes são valores que orientam a ação política do partido, que deve pautar-se sempre por um programa, e não princípios doutrinários configurados como um outro sistema social a ser implementado a partir da "tomada do poder". Para o PT, igualdade social e democracia são irmãs gêmeas, inseparáveis.

Por tudo isso, o programa do Partido dos Trabalhadores pode ser sintetizado nas seguintes palavras: radicalização da democracia. Seja por meio de uma reforma institucional de caráter democrático-republicano; seja através da democratização do capital e da riqueza; seja por intermédio do combate efetivo à miséria e à pobreza, seja pela via da crítica e de medidas efetivas contra a discriminação racial, de gênero, de opção sexual etc, herança maldita de séculos de escravismo e patriarcalismo.

Inspirado nos valores humanísticos, na luta pela democratização do Brasil, o programa do PT orienta-se pelas seguintes diretrizes gerais:

1. Reformas institucionais

A afirmação da democracia no Brasil pressupõe a democratização do sistema político-institucional. A começar por um reequacionamento das funções e prerrogativas dos três poderes, com a limitação dos poderes do Presidente, a recuperação das prerrogativas legiferantes e reguladora do Congresso Nacional e a democratização do Poder Judiciário, assegurando-se, pela reforma da justiça, a vigência do estado de direito e o princípio da igualdade de todos perante a lei. Pelo restabelecimento da proporcionalidade correta do número de parlamentares por estado na Câmara, pela instituição da fidelidade partidária e democratização do sistema eleitoral, de modo a valorizar o eleitor, estabelecer o princípio da eqüidade de condições nas disputas eleitorais e fortalecer os partidos, tornando-os capazes de representar interesses políticos e sociais de forma coerente e com visibilidade. E por último, pela implementação de formas variadas de controle social sobre o poder publico, criando-se assim uma verdadeira esfera pública não estatal.

2. Democratização do capital

A democratização do capital é condição essencial para o aprofundamento da democracia no Brasil. Neste país, não se trata apenas de incrementar uma melhor distribuição da renda, via tributação e políticas públicas de bem-estar, segundo o ideário da social-democracia. É a própria estrutura do capital que deve ser mudada e submetida às regras da competição, permitindo o surgimento de uma economia aberta, sem privilégios definidos pelo Estado, com restrições efetivas aos oligopólios e com oportunidades multiplicadas.

Requisito prévio para isso é o abandono da vocação de intervencionismo econômico de tipo tradicional do Estado brasileiro, em função de um novo papel para este em relação à economia. Papel que pode ser definido como de regulação e fiscalização do mercado - para corrigir suas distorções e estimular a concorrência - e indução a um desenvolvimento ecologicamente sustentado e democratizador. Além de papéis tradicionais, como a administração da moeda.

Ao Estado cabe a função econômica básica de ampliar as oportunidades, e não criar e fortalecer privilégios. Esta definição sintoniza-se com o ideário do PT, cujo objetivo central é acabar com a exclusão econômica, política e cultural das grandes massa pobres da população brasileira, da cidade e do campo. Primeiro, para retomar o desenvolvimento do país em bases democráticas, distribuindo renda e riqueza e criando um mercado interno de massa que abarque o conjunto da população; portanto, um tipo de desenvolvimento substancialmente distinto daquele proporcionado pelo nacional-desenvolvimentismo. Segundo, para atacar o desemprego pela única via possível, a liberação e o fortalecimento da energia econômica do povo brasileiro. E terceiro, para enfrentar o déficit fiscal do Estado, por meio da racionalização das despesas e do aumento da arrecadação. Aumento possibilitado pela reforma tributária, pela retomada do crescimento, pela incorporação progressiva de novas massas de contribuintes retirados da informalidade e pelo combate à sonegação.

Os governos, em todos os níveis, devem atuar firmemente em favor de políticas que visem estender o manto da legalidade a tudo o que possa ser legalizado, ou seja, a toda iniciativa econômica não criminosa, lícita, que deve ser estimulada ainda por políticas de crédito, de apoio e orientação técnica, de capacitação gerencial e de estímulo a formas cooperativas de organização.

Tudo isso pressupõe políticas macro-econômicas adequadas, que busquem compatibilizar crescimento econômico sustentado - ainda que a taxas não excepcionais, mas duradouras e constantes -, com estabilidade monetária, abertura da economia de modo a dificultar a criação de reservas de mercado cativas sem, no entanto, expor a empresa nacional a concorrências predatórias, e distribuição de renda e riqueza. Pode-se antecipar que uma tal compatibilização deverá exigir a renegociação da dívida externa pública em novas bases, tal o ônus que os atuais compromissos com o pagamento de juros e parcelas do principal acarretam ao país.

3. Reforma das instituições econômicas

Uma mudança de caráter republicano deve incidir, com ênfase particular, sobre o conjunto das instituições econômicas. A democratização do capital e da riqueza, com o fim dos privilégios definidos pelo Estado, requer uma reestruturação do Banco Central, para que atue de forma transparente e adquira independência em relação às instituições financeiras privadas; a reformulação e o fortalecimento do mercado de capitais, para que se torne transparente, menos vulnerável à especulação e acessível aos pequenos poupadores; a transformação do BNDES em banco de desenvolvimento orientado pelo interesse geral, e do Banco do Brasil em agência de fomento ao produtor rural não monopolista, à economia popular e aos micro, pequenos e médios empresários; a mudança das funções da Caixa Econômica Federal, para que se dedique de fato ao crédito para a habitação popular; e a retirada da SUDENE, da SUDAM e de outras instituições regionais do domínio do fisiologismo, transformando-as em instrumentos de combate às desigualdades entre as regiões do país.

Alem disso, para a defesa dos direitos dos consumidores, impõe-se a modificação urgente do estatuto das agências criadas pelo governo com a função de regular e fiscalizar as empresas concessionárias de serviços privatizados ou abertos à participação de empresas privadas (ANATEL, ANP etc). As alterações devem realizar-se no sentido de abrir essas agências à participação dos consumidores e dotá-las de poder real. Só assim serão transformadas em instituições públicas aptas a cumprir com transparência suas funções.

4. Déficit fiscal e recomposição da poupança pública

À frente de governos municipais e estaduais, o PT vem afirmando na prática seu compromisso com o princípio da responsabilidade fiscal. Também nisso subverte uma tradição brasileira, a do governante irresponsável, populista, que gasta o que não tem, muitas vezes mal ou em proveito próprio ou de protegidos, afeito à prática de contrair dívidas a serem "roladas" por seus sucessores. O povo brasileiro, contribuinte ou não, tem pago caro por esta prática. Pagou com o desperdício de recursos públicos, com a protelação ad infinitum de soluções para situações sociais dramáticas, com a destruição dos sistemas de educação e saúde e com a transformação do Estado em fator de desorganização da economia, onerada por custos parasitários e desarticulada pela inflação.

Na área da educação, por exemplo, o gasto irresponsável contribuiu, em grande medida, para a criação de dois sistemas de ensino. Um de boa qualidade, destinado a segmento reduzido da juventude, e outro desqualificado, para a grande massa de crianças e jovens pobres ou com poucos recursos. Estabelecia-se, desse modo, mais um mecanismo básico de concentração de renda e riqueza, pela circunscrição das oportunidades de realização profissional aos filhos da elite dominante.

Por isso, ao mesmo tempo em que valoriza o princípio da responsabilidade fiscal, o PT está apresentando emendas ao projeto de lei sobre o assunto apresentado pelo governo. Com tal procedimento, o PT objetiva assegurar direitos essenciais de estados e municípios. Do mesmo modo, apoia a fixação de um teto para os salários dos funcionários públicos federais e de sub-tetos para os funcionários municipais e estaduais.

Mas o equacionamento da questão fiscal no Brasil torna inadiável uma Reforma Tributária que redefina o pacto federativo entre municípios, estados e união, amplie a base de tributação e dificulte a sonegação, elevando as receitas do poder público. Isto, ao mesmo tempo em que institui a justiça tributária, estimula a economia informal a transitar para formalidade, beneficia o investimento produtivo e fortalece a competitividade nacional. A Reforma Tributária, tal como proposta pelo PT, combinada com uma lei de responsabilidade fiscal correta, é requisito para a recuperação da capacidade do Estado para realizar políticas públicas sem criar inflação e sem comprometer a competitividade da economia. Mas as suas conseqüência serão bem mais amplas, por exemplo, pelo efeito positivo que pode trazer para a distribuição de renda.

A reorganização do país em moldes democráticos passa igualmente por uma reforma geral da Previdência, para assegurar vida decente aos idosos sem inviabilizar as contas públicas. O PT defende um sistema básico único de aposentadoria, válido para todos, seja do setor público ou do privado. Defende também um subsistema de aposentadoria complementar, de caráter privado e também público. Sistemas que se fundamentem na contribuição por meio de mecanismos de capitalização. Porque a previdência é também uma via decisiva para a criação de uma poupança nacional compatível com a nossa ambição e necessidade de desenvolvimento.

5. Políticas sociais e educação

A universalização e a qualificação da educação, voltada para a formação da cidadania e para a capacitação do indivíduo para a vida no século XXI, é função precípua do Estado e item central no programa do PT. No mundo de hoje, o nível de escolaridade é a principal força produtiva da sociedade. E não há como falar seriamente em democracia, fim da exclusão social, sociedade aberta e multiplicação das oportunidades sem uma noção clara desta prioridade.

As políticas sociais devem enfrentar os problemas da fome, da miséria e da desasistência que atingem grandes massas da população. Para tanto, devem contemplar a estruturação de um sistema igualmente qualificado e universal de saúde e assistência social; a realização da reforma agrária e a adoção de política agrícola, para democratizar a propriedade da terra, viabilizar a pequena agricultura e ampliar a produção de alimentos; a reforma geral do sistema de segurança pública, de modo a reduzir significativamente a violência e combater eficazmente o crime organizado; e a adoção de programas de renda mínima para as famílias mais necessitadas.

6. Política cultural

A política cultural do Estado deve fundamentar-se nas seguintes premissas: primeiro, a cultura nacional é parte da cultura universal, donde se deduz que não cabe qualquer traço nacionalista na orientação do poder público em relação à cultura; segundo, a valorização da cultura nacional, em toda a sua diversidade de manifestações e singularidades regionais e locais, significa afirmar a nossa identidade brasileira que, quanto aos valores, não se opõe às identidades de outros povos e nações; terceiro, é dever do poder público respeitar a pluralidade cultural, não lhe cabendo qualquer orientação discriminatória em relação às manifestações culturais e artísticas; quarto, é função prioritária do Estado proteger, promover e contribuir para o desenvolvimento das manifestações culturas que subsistem à margem dos meios de comunicação massa e da indústria cultural, favorecendo desta maneira a floração de correntes e produtos que transcendam às finalidades meramente mercantis; quinto, é indispensável estabelecer uma interface consistente entre cultura e educação, para fortalecer os valores culturais e artísticos e infundir valores humanísticos na formação da juventude; por último, a cultura deve ser concebida como veículo fundamental de afirmação da cidadania.

7. Relações internacionais

Outra função precípua do Estado consiste em defender os interesses nacionais e fortalecer a nossa identidade brasileira. Para nós é o povo quem, essencialmente, encarna e dá substância à nação, cuja defesa não passa de falácia sempre que não se refere antes de tudo aos habitantes de um determinado território. Daí porque aprofundar a democracia, combatendo a miséria e a exclusão social, deve ser entendido como problema nacional supremo.

O PT considera que, a despeito de potenciais conseqüências positivas para a humanidade, o chamado processo de globalização tem como características determinantes, neste momento, a prevalência da lógica monopolista e financeira sobre os interesses de povos e nações e o fortalecimento sem precedentes da hegemonia norte-americana. Diante disso, o Brasil não deve incorrer nem no erro do auto-isolamento nem no equívoco da submissão passiva à dinâmica global.

Tendo como objetivo uma integração soberana no mundo globalizado, o Brasil deve buscar um relacionamento estreito com todos os povos e países, sem distinção, respeitados o direito e os tratados internacionais. Deve atuar no sentido de fortalecer o comércio, recusando o protecionismo e a desigualdade de tratamentos no âmbito do GATT, atrair investimentos e tecnologia, defender a paz, os direitos humanos e o meio-ambiente, fortalecer o intercâmbio cultural e promover os valores nacionais.

A nossa política externa deve pautar-se ainda pela defesa da democratização das instituições internacionais e fortalecimento da ONU como instância global, para a garantia da convivência pacífica entre os povos e para o enfrentamento de problemas mundiais, como o narcotráfico, o armamento nuclear, a fome, a discriminação racial, os conflitos étnicos etc.

O Brasil deve lutar pelo fortalecimento e ampliação do Mercossul. De comum acordo com os demais parceiros, deve buscar a adesão de novos países, introduzir o tema da criação de um sistema político-institucional na agenda do bloco, construir uma agenda social comum, buscar a participação das sociedades civis dos países integrantes e aprofundar a agenda econômica.

A situação exige que o Brasil seja dotado de uma nova política de defesa, com o objetivo central de alcançar a autonomia estratégica nas relações internacionais. Para tanto, entre outras medidas, será necessário reorganizar as Força Armadas retirando-as do velho conceito de "defesa da ordem interna" e realocando os seus efetivos no espaço territorial e nas áreas mais críticas para a integração territorial e para a defesa das fronteiras.

O programa do PT orienta toda a ação política do partido, na sociedade, no poder executivo e no parlamento. Não está destinado a ser aplicado apenas a partir do governo. Tampouco, a partir do governo, é um programa para apenas quatro anos, pois implica numa transformação com tal amplitude que só será viável ao longo de um período histórico mais longo. Além disso, quanto ao governo, abarca todas as suas esferas, imprimindo sentido único também à ação de nossos prefeitos e governadores. Desde o seu nascimento o PT está vocacionado para governar o Brasil, e assim será, a serviço da democracia. Por isso recusa tanto a opção do auto-isolamento numa posição messiânica, o gueto político tão familiar a uma parte da esquerda tradicional, como a alternativa da adesão pura e simples à ordem estabelecida, quando muito adornada com o adereço do "melhorismo social". "Mudar e mudar, pela via democrática!", eis o nosso refrão!

São Paulo, Novembro de 1999

Adriano Bardou - PT/PR

Adriano Diogo – Vereador – PT/SP

Aldo Fornazieri – DR/SP

Augusto Lobato – CEE/MA

Carlinhos Almeida – Dep. Estadual, PT/SP

Edna Domingos – EEM, Maracaxume/MA

Eduardo Jorge – Dep. Federal, PT/SP

Edgar Nóbrega – PT/SP

Eni Fernandes – Vereadora S. J. do Rio Preto – PT/SP

Erotides Borges – CEE/GO

Francisco Barciela – PT/SP

Humberto Costa - Membro DN/PE

Irineu Colombo – Dep. Estadual – DR/PR

Jefferson Goulart – PT/SP

José Carlos Pegolaro – PT/SP

José Eduardo Cardoso – Vereador – PT/SP

José Genoino Neto – DN, Dep. Federal – PT/SP

José Nobre Guimarães – CEN, Pres. DR/CE

Leonardo Nogueira Gomes – Léo – PT Volta Redonda/RJ

Luciano Cartaxo – Vereador – PT/PB

Luiz César Bueno – DN, Pres. DM/Goiânia

Lygia Puppato – DN, PT/PR

Marcelo Henrique da Costa – CEE/RJ

Mascos Martins – Vereador Osasco – PT/SP

Marina Silva – CEN, Senadora/AC

Marlise Fernandes – CEN, PT/RS

Márcia Barral – DR/SP

Marcos Rolim - Dep. Federal/RS

Maurício Faria – PT/SP

Olicino Duarte – PT/AC

Ozeas Duarte – DN, PT/SP

Paulo Pimenta – Dep. Estadual, DR/RS

Ricardo Ferro – Cem/São Luiz - PT/MA

Roberto Gouveia – Dep. Estadual, PT/SP

Sérgio Honório de Carvalho – PT/SP

Sebastião Ribeiro – CEE/GO

Leia aqui reportagens sobre a polêmica das teses
Jornal do Brasil - O Estado de S. Paulo - Jornal da Tarde

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