1982-2002

Artigos | Projetos | Docs. Partidários

Versão para impressão  | Indicar para amigo

Docs. Partidários


Crise conservadora e alternativa de esquerda Texto preparatório para o II Congresso do PT - 1999

A reeleição de Fernando Henrique Cardoso ainda no primeiro turno das eleições de 1998, paradoxalmente, coincidiu com o aprofundamento da crise brasileira e com uma visualização maior, por parte da opinião pública e de analistas, de que seu primeiro mandato foi um monumental fracasso. Finalmente começou a se dar crédito ao que a oposição e alguns poucos economistas diziam: o plano de estabilização do governo aconrado no cambio sobrevalorizado e nos juros altos era insustentável. O governo estava vendendo uma grande fantasia que custaria caro à toda sociedade, mas, principalmente, aos trabalhadores e ao setor produtivo. A crônica da realização dessas advertências vem sendo escrita desde o término das eleições do ano passado até os presentes dias.

Em paralelo ao crescimento da crise, outro fato considerável da conjuntura é que as próprias eleições mudaram o cenário político do país. Se é verdade que a oposição não conseguiu provocar um segundo turno nas eleições presidenciais, que teve um crescimento moderado na Câmara, no Senado e nos governos estaduais e que os governistas constituem uma força majoritária no Congresso, não é menos verdade que a imagem do governo saiu trincada e a oposição, pelas suas propostas e críticas, saiu legitimada do processo eleitoral. Há outros três fatores relevantes que contribuíram para a mudança do cenário: a mobilização crescente dos trabalhadores ante o desemprego e a recessão; a mudança de postura da FIESP, que saiu da condição de entidade do "amém" para adotar uma postura reivindicativa; e a crise dos estados, que colocou na ordem do dia a discussão do pacto federativo. O primeiro efeito dessas mudanças consistiu na formação de uma ampla coalizão informal de oposição à política econômica do governo. O segundo, consistiu em mudanças de parte da equipe econômica do governo e no abandono desorganizado da política cambial ortodoxa. Mas o aprofundamento da crise deixou evidente também o seu caráter político: o presidente Fernando Henrique não governa e o país está sem rumo.

O ponto de partida da esquerda em face do novo cenário que se inaugura a partir do resultado das eleições e do advento da crise deve consistir no balanço da experiência do período anterior, com o objetivo de corrigir erros e resgatar acertos. Acredito que o principal erro da oposição nos últimos quatro anos se localiza na sua incapacidade de constituir um bloco político reformador, capaz de propor alternativas às propostas conservadoras nas áreas da reforma do Estado, do modelo de inserção do Brasil no mundo globalizado, nas privatizações e no âmbito de uma ampla reforma social orientada para combater a exclusão, a falta de direitos e o desemprego. A inexistência desse movimento reformador despotencializou a esquerda impedindo que ela liderasse parcelas sociais e políticas mais amplas em oposição ao bloco governista.

Mas, inegavelmente, a oposição evoluiu ao formular críticas pertinentes ao modelo conservador e ao propor algumas alternativas que se legitimaram no processo eleitoral. É preciso ter presente que a oposição enfrentou, no último período, uma maré montante de pensamento único e de arrogância governista, patrocinada por parte da mídia e por alguns analistas e comentaristas, que chegou a entorpecer a crítica intelectual, as manifestações de diferença e até a atividade de oposição. Em certo sentido, pode-se dizer que foi um feito a oposição de esquerda ter conseguido sobreviver nas eleições e se legitimar junto à opinião pública.

Quanto à tática da oposição em relação à crise, não se pode aceitar o velho ardil das elites em torno da idéia do "pacto nacional" supostamente salvacionista. Tornou-se recorrente na história do Brasil que sempre que surgem situações de crise se apela para os pactos. Esses apelos servem para diluir as responsabilidades e as culpabilidades dos erros políticos e administrativos. Em política, a identificação de responsabilidades é decisiva para que ela possa expressar algum conteúdo ético e para que as disputas possam ocorrer a partir de conteúdos e postulados autênticos. A diluição das responsabilidades e das culpabilidades instaura o reino do oportunismo político e o jogo manipulatório da opinião pública. Por isso, a esquerda precisa explicitar suas críticas, fazer uma oposição contundente ao governo, mas sempre com a perspectiva de apontar saídas e soluções para o país. Formular críticas e fazer oposição é uma prerrogativa da fundação da autenticidade das diferenças em relação ao bloco governante. Apontar soluções e saídas é um imperativo da responsabilidade da oposição para com a sociedade e um meio para credenciar uma alternativa de governo.

APROFUNDAR O PROGRAMA DE REFORMAS

A viabilização dessa tática crítico-propositiva implica no equacionamento de três grandes linhas de ação. A primeira se refere ao aprofundamento dos eixos programáticos alternativos ao modelo neoliberal. O programa de governo proposto nas últimas eleições já é um bom ponto de partida. Mas, acredito que é preciso definir melhor os parâmetros de um novo modelo econômico auto-sustentável centrado na promoção da produção, do trabalho e da distribuição de renda. Esse modelo precisa redefinir os critérios da relação do Brasil no contexto da economia globalizada. Não se pode, por exemplo, dar continuidade ao processo de financiamento do Estado e de alavancagem da economia apenas a partir do capital externo, como vem fazendo o governo Fernando Henrique. E se, por outro lado, a abertura econômica é necessária e desejável ela não pode ser ilimitada e sem critérios ao ponto de desorganizar a produção nacional, gerar falências e desemprego, como ocorre no atual modelo. Para o estágio presente da economia brasileira parece mais adequado adotar três critérios diferenciados: a) permitir a presença externa naquelas áreas em que o setor produtivo nacional já adquiriu condições de competitividade; b) proteger e estimular aqueles setores produtivos que não têm condições de competitividade, mas estabelecendo metas e prazos para que se modernizem tendo em vista uma posterior abertura; e, c) definir aqueles setores que não seriam submetidos à competição externa. Com esses critérios seria possível buscar uma equação otimizadora: a economia nacional seria obrigada a se modernizar por conta da competição, o consumidor seria favorecido em termos de qualidade e preços, o emprego seria garantido e alguns setores da produção seriam protegidos sem que isso representasse um protecionismo do atraso.

Um programa de esquerda deve conter também um compromisso social básico que enfrente os problemas do desemprego, da degradação social, da marginalização, do abandono das crianças e a questão da terra. A implantação de um programa nacional de renda mínima e pesados investimentos em saúde e educação públicas são medidas imprescindíveis para atacar a exclusão e abrir as portas das oportunidades e das chances de vida para os vastos setores sociais que ficaram à margem da estrada do progresso.

Um dos principais pontos de estrangulamento da modernização do país e de impedimento da cidadania se situa nos interesses que o Estado serve e na forma que ele atua. Desprivatizar o Estado e publicizá-lo, no sentido de colocá-lo a serviço dos interesses gerais da sociedade, é uma demanda irrenunciável para que as condições de justiça e de igualdade de direitos se instaurem numa sociedade marcada por diferenças sociais abissais. O Estado brasileiro precisa ser refundado e capacitado para garantir os direitos de cidadania. Um dos aspectos dessa refundação consiste na modernização das diversas atividades de serviços. Não é aceitável que as pessoas enfrentem o calvário das filas do INSS, dos hospitais públicos, das escolas públicas etc. O cidadão precisa ter garantido o direito de acesso a serviços universais e eficientes. Muitas pessoas, principalmente a classe média, pagam duplamente a seguridade social: uma pública e outra privada. A pública, paga através de impostos como IR, INSS etc, não devolve nada a esses contribuintes. A privada, constituída pelos planos de saúde, escola particular etc, além de ser cara, não poucas vezes viola os direitos dos consumidores.

Boa parte das atividades de serviços foram privatizadas, como é o caso da telefonia, energia elétrica, transporte etc. Ocorre que, com as privatizações, o poder público não preservou para si as prerrogativas de estabelecer normas e de fiscalizar de forma adequada a prestação desses serviços. As agências reguladoras governamentais são incapazes de impor-se às poderosas concessionárias. O consumidor, a rigor, foi abandonado à sua própria sorte.

Uma reforma fiscal e tributária que estabeleça a justiça fiscal, a progressividade dos impostos e que redimensione o pacto federativo, é outro ponto que a esquerda precisa incorporar na sua visão de reforma do Estado. Hoje o país vive uma situação onde o principal peso tributário recai sobre os consumidores e os trabalhadores, onde se manifesta um desequilíbrio federativo com a União sufocando a autonomia dos estados e municípios e onde temos uma das mais elevadas cargas tributárias do mundo, mas sem uma contrapartida em termos de seguridade social e serviços.

Outro aspecto da modernização institucional diz respeito à reforma política. Ela abarca um amplo leque de temas e precisa incidir sobre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O sistema político brasileiro não será efetivamente democrático enquanto o Judiciário permanecer ineficiente e sem controles, enquanto o Executivo concentrar um poder imperial e enquanto o Legislativo não mudar a estrutura de representação dos estados e não fizer uma ampla reforma interna acabando, inclusive, com a improcessualidade de parlamentares para crimes comuns. O sistema eleitoral e partidário também precisa ser reformado. Instituir o financiamento público das campanhas e encontrar uma fórmula de eleições que fortaleça os partidos são requisitos para que o Brasil ingresse numa era de coerência, previsibilidade e governabilidade maiores, indicativas de um movimento de superação da instabilidade política permanente que caracterizou nossa história republicana. Punir os eleitos que trocam de partido com a perda de mandato e estabelecer regras de organização partidária capazes de impedir a presença de siglas de aluguel, são medidas necessárias para criar um sistema de partidos enxuto, coerente e representativo dos interesses sociais reais. A oposição de esquerda não pode apostar na instabilidade institucional como atalho para chegar ao poder. Pelo contrário, o seu caminho é o da reforma institucional com o objetivo de aprofundar a democracia ampliando os espaços de participação política e integrando social e economicamente os excluídos. As crises institucionais, via de regra, sempre representaram retrocessos políticos e movimentos de rearticulação das elites conservadoras.

PROMOVER OS DIREITOS E A CIDADANIA E ORGANIZAR OS MOVIMENTOS SOCIAIS

A segunda linha de ação sobre a qual a esquerda precisa projetar esforços e onde não pode falhar se situa nos Executivos estaduais e municipais onde ela governa. O êxito dos governos de esquerda tornou-se um requisito decisivo para a viabilização de uma alternativa nacional de oposição nas eleições gerais de 2.002. O êxito da esquerda nos Executivos estaduais e municipais não pode se reduzir a uma mera melhoria da capacidade governativa em relação aos modelos presentes e à situação herdada de governança. É preciso governar para toda a sociedade com eficácia e moralidade, mas, principalmente, governar com prioridades definidas voltadas para aqueles setores sociais mais necessitados e que sempre estiveram excluídos das políticas públicas. Em suma, os governos de esquerda serão exitosos se forem capazes de efetivar uma ampla promoção de direitos e cidadania. Uma das mais importantes condições desse êxito exige uma reforma das máquinas administrativas com o sentido de capacitá-las a investir em políticas públicas. Isto não será possível enquanto 70%, 80% ou mais dos recursos da receita forem consumidos em folha de pagamentos. Responsabilidade fiscal é, hoje, sinônimo de capacidade de investimento em políticas públicas. Essa é uma bandeira que deve ser empunhada pela esquerda.

O fortalecimento de uma alternativa de esquerda passa também pelo aprofundamento da política de alianças. Os diversos partidos de esquerda precisam solidificar tanto suas afinidades programáticas quanto suas unidades eleitorais. Não há, para eles, nem futuro e nem sentido na fragmentação. Essa política de alianças não deve se restringir aos partidos. Ela precisa ser lastreada no movimento social, nas camadas da classe média e no empresariado. O programa de esquerda deve ser capaz de aglutinar uma ampla representação de interesses sociais, uma representação dos interesses majoritários da sociedade.

Por fim, a terceira linha de ação que precisa ser calibrada é aquela que corre no leito dos movimentos sociais. Nos quatro anos do primeiro mandato de Fernando Henrique, os movimentos sociais permaneceram numa postura defensiva, com exceção do MST. Sem um robusto movimento social, constituído por um largo arco que vai desde os excluídos até setores do empresariado, as reformas institucionais democratizadoras nesse país não terão êxito, um modelo econômico de desenvolvimento, emprego e distribuição de renda não será sustentável e um modelo social de integração através de direitos e cidadania será eternamente adiado. O movimento social, articulado com uma adequada representação política, precisa derrubar as portas e as barreiras que impedem a modernização do país e a afirmação da cidadania e da justiça.

A contraface de sermos governados por uma elite autoritária e excludente é a existência de uma sociedade civil desarticulada e não participativa. A elite conservadora nos oferece um Estado ineficiente e privatizado, orientado para atender os interesses próprios da mesma elite. A sociedade civil desarticulada oferece o deplorável espetáculo da ausência de cidadania e do déficit de direitos. O Estado desacreditado, a falência da governabilidade, a carência de políticas públicas e a ineficácia das leis criaram o status quo no qual as elites operam os seus interesses. A descrença na participação, o recurso à violência social e criminal, o comportamento não-segundo normas, o fortalecimento da cultura predatória, o fracasso da representação política, o enfraquecimento das entidades representativas e a desesperança são os elementos que fermentam no interior da bolha desconexa que é a nossa sociedade. Somente um programa político capaz de dar coerência a esses interesses dispersos e um movimento social vigoroso e bem organizado poderão superar esse Brasil profundamente injusto dando-lhe um sentido e um destino orientados pelos valores humanísticos e pelas conquistas civilizatórias dos direitos e da cidadania.

José Genoino — Deputado Federal PT/SP

Busca no site:
Receba nossos informativos.
Preencha os dados abaixo:
Nome:
E-mail: