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A esquerda precisa definir um projeto Texto para o II Congresso do PT - 1999

O mundo atual está marcado por alguns acontecimentos e determinações que sinalizam a necessidade de reorientar radicalmente o modo de fazer política por aqueles que pretendem sustentar uma posição de esquerda. O colapso do socialismo, o fim da Guerra Fria, o triunfo da ideologia neoliberal, a globalização, as crises financeiras incontroláveis, os problemas ambientais, a revolução tecnológica e as imensas parcelas da humanidade que vivem em condições de pobreza e miséria são alguns dos elementos que caracterizam a atualidade. Vivemos uma era de incertezas e imponderabilidades. A instabilidade que ocorre no plano mundial se reflete em cada país, na medida que o mundo é cada vez mais interligado.

No Brasil, pode-se dizer, o governo Fernando Henrique inaugurou uma nova fase. Trata-se de um governo que lidera um amplo bloco político que vai desde o centro até a direita, que tem na estabilidade econômica o seu maior capital politico e que procura implementar um amplo programa de reformas em nome da modernização do Estado e da orientação da economia para o mercado. Mas a crise internacional, o debate ocorrido nas eleições e o final melancólico do primeiro mandato de FHC indicam que o modelo adotado está em crise.

Por adotar um programa que favorece as elites, o governo não conseguiu superar alguns impasses históricos da vida brasileira. A exclusão social, a pobreza, o analfabetismo e a concentração de renda e riqueza são problemas que estão no cerne que separa o Brasil real do Brasil desenvolvido desejado por muitos. Não resta dúvida de que o Brasil precisa de reformas, mas, de quais reformas? Tudo indica que o conteúdo e o sentido das reformas do governo FHC não apontam para a superação dos impasses históricos que aprisionam o Brasil na condição de uma sociedade não desenvolvida e injusta.

Definir um programa coerente e exequivel, capaz de agregar amplas maiorias sociais e políticas, parece ser o principal desafio a ser enfrentado pelo PT e pela esquerda no período político que se inaugura com o segundo mandato de Fernando Henrique e com a nova Legislatura. O PT, apesar do crescimento eleitoral moderado, saiu das últimas eleições gerais com um saldo político positivo. Não só apontou as principais falhas do governo, mas sinalizou idéias e propostas que adquiriram credibilidade na opinião pública. É a partir deste saldo, mas consciente de suas próprias debilidades, que o PT deve abrir um processo de debates que culminará no Congresso partidário.

JUSTIÇA E EQÜlDADE

O colapso do comunismo não acabou com as possibilidades das utopias. Max Weber, afirmou categoricamente que jamais se teria alcançado o possível se não se tivesse almejado o impossível. As visões de comunismo e socialismo que se explicitaram talvez estivessem erradas, principalmente, os meios que foram empregados em nome dessas causas foram desastrosos e muitas vezes criminosos. É preciso redimensionar a relação entre a utopia imaginária e os objetivos reais da ação política. A utopia deve servir como um conjunto de valores, um sentido regulador da nossa ação. Sem ela caiaríamos no praticismo oportunista que caracteriza tantos políticos. A política real implica a ação referenciada no possível, mediada pelos instrumentos e meios capazes de produzir resultados concretos, ainda que limitados e orientadas pelos valores. Se isto é verdadeiro, qual a idéia reguladora que hoje sintetiza uma relação adequada entre o desejo de um mundo melhor e a realidade do mundo em que vivemos?

A busca de uma sociedade justa vem se tornando o grande ideal deste final de sécuio e de milênio para um número cada vez maior de pessoas, de movimentos e de partidos. Com o recuo do comunismo, o sistema democrático de governo vem se afirmando em quase todos os países. Mas a democracia não tem o mesmo significado para todos, nem na sua forma nem no seu conteúdo. Alguns países adotam a democracia com elevado grau de liberdade; outros adotam regras democráticas de disputa política, mas com restrições significativas às liberdades. Para uns, a democracia não deve interferir nas relações sociais e econômicas; para outros, ela deve garantir o bem estar e a eqüidade.

A liberdade é o valor supremo da democracia e um dos pressupostos fundamentais da sociedade justa. O valor da liberdade se afirma a partir de vários ângulos de abordagem. Germinou com as aspirações humanas de liberdade de pensamento, de consciência, liberdade da pessoa, liberdade religiosa e as liberdades civis para, finalmente, se consagrar como liberdade política, entendida como direito de participação igual para todos nos assuntos políticos. A liberdade representa, hoje, em termos políticos e civis, a garantia de um conjunto de direitos fundamentais imprescritíveis e não passíveis de supressão. É certo que sem determinadas condições de existência dos indivíduos, sem a garantia de uma qualidade de vida razoável, grupos sociais e indivíduos não têm capacidade assegurada de desfrutar dos direitos de liberdade. A sociedade justa deve garantir as condições necessárias para que os indivíduos e grupos desfrutem da liberdade e deve ser entendida como potencializadora da liberdade dos menos favorecidos, capacitando e ampliando o leque de suas oportunidades e de suas chances de vida. Trata-se de buscar um equilíbrio econômico e material, condição de acesso a bens mais amplos, como ensino, cultura etc. A sociedade justa é inseparável da eqüidade que não significa o igualitarismo nivelador preconizado pelo socialismo. Expressa a idéia da garantia de condições básicas de existência e desfrute dos bens materiais e culturais. A sociedade justa não se reduz aos aspectos econômicos e de bem-estar, mas agrega também as liberdades políticas e individuais. O bem-estar não pode ser garantido às custas da violação dessas liberdades. A justiça, em sentido amplo, não pode sacrificar a liberdade de poucos em nome do bem-estar de muitos e nem bem-estar de muitos em nome da liberdade de todos. A sociedade justa se refere à existência de uma inviolabilidade de cada pessoa radicada nas liberdades e nas necessidades, cuja satisfação básica constitui a idéia de justiça. Esta inviolabilidade diz respeito à garantia efetiva de uma série de direitos constitutivos da cidadania. A sociedade justa, inerente à democracia, não pode ser entendida como uma forma acabada ou um estágio final de sociedade. É, antes de tudo, uma idéia reguladora da ação política e da praxis social, visando alcançar um estágio razoável de liberdade, de bem-estar e de progresso material e cultural, a partir do qual a sociedade poderá desenvolver novas potencialidades e novas perspectivas. A justiça deve ser a virtude orientadora das instituições políticas e sociais do sistema democrático de governo. A luta pela justiça requer a transformação de tais instituições no sentido de torná-las compatíveis com a busca desta virtude

BRASIL: UM PAÍS INJUSTO

Partindo da idéla-síntese da luta por uma sociedade justa, é preciso ampliar e conferir um sentido mais geral ao programa de ação do PT. Ora, se a sociedade justa ou a justiça é constituida por uma inviolabilidade básica da pessoa humana, integrada por determinados graus de liberdade e de bem-estar, a sociedade brasileira está muito longe de qualquer padrão razoável de justiça. Os índices sobre a realidade social do Brasil elaborados pela ONU, OEA, IPEA, IBGE etc, são unânimes em apontar as disparidades materiais e culturais, as deficiências no ensino, na saúde, na habitação, no saneamento básico e os desníveis de renda e riqueza. Esse consenso sobre a existência de um apartheid social permite afirmar, categoricamente, que a sociedade brasileira é uma sociedade injusta.

A sociedade injusta articula um Estado ineficiente e desacreditado com uma sociedade civil desarticulada, e uma cidadania deficitária e sem direitos. Um profundo déficit de democracia no Estado e na sociedade é a marca mais forte da sociedade injusta. A Revolução de 30, é verdade, criou vários pré-requisitos para o surgimento da democracia moderna. Contra o jogo político fechado no interior das elites da República Velha, destinado a distribuir as benesses patrimonialistas, a Revolução de 30 afirmou a noção de que o bem coletivo deveria ser produzido pelo setor público. Estabeleceu as bases do ordenamento da competição da economia privada, do surgimento das categorias profissionais, da estratificação, da agenda do movimento operário, da política social e da universalização do sufrágio.

Mas o corporativismo, a burocratização, a ação tutelar do Estado sobre a sociedade civil, a estatização dos conflitos sociais, a fragilidade representativa dos partidos políticos, o populismo e o autoritarismo foram minando a participação política dos cidadãos, desestimulando o seu engajamento nas organizações sociais e refreando a competição político-partidária aberta, segundo normas. As transições conservadoras pelo alto consagraram a máxima elitista do "façamos a revolução antes que o povo a faça", confirmando a avaliação de Sérgio Buarque de Holanda de que no Brasil a democracia sempre foi um grande mal-entendido. A instabilidade política e a crise social, com longas temporadas de autoritarismo, pontificaram nos mais de 60 anos de República Nova. O último ato dessa crise institucional permanente foi o impeachment de Collor.

Apesar dos avanços recentes de democratização, o Estado desacreditado e a cidadania não-participativa são ainda as nossas principais características. Estudos recentes confirmam que, em termos de participação, as filiações partidárias e sindicais são baixas e até decrescentes, e que são poucos os que participam em alguma associação da sociedade civil. O número de pessoas que se dirige ao poder público, ao judiciário, à policia ou a outras instituições para resolver conflitos ou até mesmo para reivindicar direitos é extremamente baixo. Mais da metade dos que adotam esta iniciativa se dirigem aos políticos ou ao poder público para estabelecer uma relação do tipo clientelista-paternalista. Por outro lado, o conflito social é extraordinariamente alto. Mas são poucos os que recorrem à mediação do Estado para solucioná-lo. Tanto o judiciário como a polícia apresentam altos índices de ineficiência no atendimento e resolução das demandas dos cidadãos. A mesma falência da governabilidade ocorre em relação às políticas públicas, principalmente nas áreas da saúde, educação, habitação e segurança. A informalidade e a precarização crescem nas relações de trabalho. Pesquisas revelam que a esmagadora maioria dos brasileiros não tem noção de seus direitos. Sucessivas tragédias vêm acontecendo na vida dos brasileiros por conta de irresponsabilidades privadas e de omissões públicas.

O resultado de tudo isso é o enfraquecimento da cuitura cívica, o decréscimo da participação, o descrédito do Estado e a falência da representação política. Em contrapartida, cresce a violência social, a organização criminal e o desrespeito às leis. Isto articula um comportamento não-segundo normas e o fortalecimento da cultura predatória, baseada em códigos privados. A selvageria social é a contraface do descrédito institucional.

É sobre a característica essencial da sociedade brasileira, sociedade injusta, que é preciso atuar politicamente no sentido de inverter a realidade da injustiça em favor de uma tendência à justiça. A ação política de esquerda deve partir de uma crítica contundente às instituições sociais, econômicas e políticas existentes e desembocar num profundo programa reformador das mesmas instituições visando radicalizar a democracia, ampliar a cidadania criando novas esferas de participação social e política e garantir direitos. Um programa reformador deve voltar-se para a reconstrução do Estado, capacitando-o para uma ação eficaz no provimento de serviços públicos essenciais, no seu papel normativo, regulador e fiscalizador, no desempenho de políticas públicas estratégicas e compensatórias e na sua capacidade fiscal e de investimentos.

Um programa reformador deve voltar-se também para a reforma das instituições sociais e para a criação de novas instituições capazes de dar vazão às exigências de uma cidadania participativa. O papel do Ministério Público, dos órgãos de defesa do consumidor, de entidades de defesa dos consumidores, o aparecimento de entidades não-governamentais que atuam em várias frentes, de entidades ambientalistas etc, representam sinais de alento e de revigoramento da sociedade civil. Mas estamos muito longe, ainda, de uma sociedade civil participativa, autônoma e de uma cidadania com direitos respeitados. É preciso enfatizar, portanto, a organização da sociedade civil e seu papel decisivo, inclusive, na reconstrução do Estado no sentido de criar instituições capazes de garantir participação e direitos.

DEMOCRACIA E OS DIREITOS SOCIAIS

A generalização do sistema democrático de governo não impediu que se colocassem em confronto duas concepções básicas de democracia. O pensamento conservador e neoliberal sustenta que o Estado democrático deve se restringir a funções mínimas como a garantia da segurança, da propriedade, dos contratos e da liberdade. O mercado seria o lugar adequado para a alocação de rendas, recursos e investimentos. Nesse esquema, não cabem ao Estado funções garantidoras de direitos sociais ou trabalhistas e de busca da justiça social.

Mas se para a esquerda, a democracia deve se referir também às condições de vida material das pessoas, como sustentamos, então a questão da garantia dos direitos sociais coloca-se no centro da disputa política em curso no Brasil. Os direitos sociais dizem respeito a um conjunto de necessidades e carecimentos humanos que se afirmaram na segunda metade do século XIX e ao longo de todo o sécuio XX. Indivíduos e grupos sociais adquiriram consciência desses carecimentos e entenderam ser legítimo reivindicar sua proteção e garantia junto ao Estado. A rigor, não há garantia de direitos sociais sem que o Estado cumpra um papel positivo, intervindo na organização social e econômica da sociedade, mas não de forma completa ou absoluta, como ocorreu nos países socialistas. Sem dúvida, a competição do mercado cumpre um papel estimulador das qualidades individuais e oxigena a criatividade e a eficiência. Mas, em termos de distribuição de rendas e de hierarquização de prioridades, o mercado provoca graves distorções porque suas orientações seguem princípios e interesses particulares. Se a democracia significa também eqüidade, a organização política da sociedade deve intervir para corrigir as distorções do mercado.

Ao contrário dos direitos de liberdade, os direitos sociais não são iguais para todos, pois visam resolver os problemas da eqüidade e da justiça social numa sociedade econômica e socialmente desigual. Também, diferentemente dos direitos de liberdade, que se afirmam como garantias juridicas formais, os direitos sociais se estabelecem como direitos materiais de cidadãos no desempenho de seus papéis específicos na sociedade. Os direitos sociais se desenvolveram a partir de movimentos que reivindicaram a terra para trabalhar, a proteção do trabalho contra o desemprego, a garantia da instrução contra o analfabetismo, a assistência para a velhice e a invalidez. Os direitos sociais não param de crescer: hoje se especificam como direitos das crianças, das mulheres, das minorias, dos deficientes, dos consumidores etc. Surgem também reivindicações de novos direitos: de viver num ambiente não poluído e direitos contra a manipulação do código genético. Alguns estudiosos consideram determinados direitos sociais imprescritíveis, permanentes, sem os quais não haveria garantia de uma sociedade democrática e livre. Trata-se do direito à alimentação, habitação, saúde e educação. Eles constituem a condição básica do supremo direito: a vida. É imprescindível lutar contra o desmantelamento dos direitos trabalhistas e contra a precarização das relações de trabalho como aquela viabilizada pelo contrato temporário. É preciso buscar políticas positivas de emprego e encontrar forma de aliviar os custos da folha de pagamentos sem atingir direitos básicos.

POR UMA ESQUERDA DEMOCRÁTICA E REFORMADORA

Ante o colapso do socialismo e a crise de referências da ideologia marxista é aina possível postular uma política de esquerda? A social-democracia, na sua versão enropéia, que teve como principal pilar de suas realizações o Estado do Bem-Estar Social pode servir como referência para um partido como o PT? Em que medida um programa de esquerda pode ainda se diferenciar de um programa liberal? A globalização e as novas tecnologias não teriam posto problemas comuns para muitos países e para deferentes partidos em cada pais?

Estas e outras indagações estão no centro das perplexidades e dúvidas que ainda povoam a militância de esquerda desde o choque provocado pelo desmoronamento do socialismo. A busca de novos parâmetros programáticos, de novos paradigmas teóricos e a redefmição de valores e objetivos tem sido uma constante em muitos partidos de esquerda de diversos países. Dos velhos partidos comunistas não sobrou praticamente nenhuma herança. O modelo guerrilheiro latino-americano e o modelo sandinista fracassaram. A social-democracia enropéla, após anos de indefinições e derrotas eleitorais está em franca ascensão. Sucesso teve também a longa transição do Partido Comunista Italiano para um novo partido de esquerda referenciado nos valores da democracia e do humanismo, o Partido Democrático de Esquerda (PDS). Na América do Sul, frentes políticas de esquerda, como as que se constituíram na Argentina e no Uruguai, se afirmam como alternativas viáveis aos programas neoliberais e conservadores. O próprio PT, pela sua originalidade, serve de referência a partidos de outros países. Nas últimas eleições, o PT apostou, com acerto, na formação de uma frente de esquerda. O PDS italiano, as frentes de esquerda latino-americanas, a social-democracia enropéia e a própria história do PT fornecem experiências de acertos e fracassos que servem de lições para balizar a superação desse impasse.

Mas, o que significa ser de esquerda hoje? Temos insistido na idéia apropriando-nos de uma afirmação do velho militante Apolônio de Carvalho que a esquerda precisa ter a capacidade de mudar sem mudar de lado. Ou seja, ter como referência de sua ação a mudança das instituições econômicas, sociais e políticas visando criar novas condições de vida para os setores mais desamparados, desprotegidos e explorados da sociedade. A esquerda deve defender os que mais sofrem: os trabalhadores do campo e da cidade, os excluídos, as camadas médias e os descriminados. Evidentemente, as transformações da velha sociedade industrial proporcionadas pelas novas tecnologias, as novas relações sociais, as mudanças culturais etc, ampliaram questões e de bandeiras de lutas que precisam ser assumidas pela esquerda.

A questão da igualdade, contudo, ainda é a que diferencia e especifica uma política de esquerda. Mas como entender a igualdade num mundo com tantas diferenças e com a preponderância da economia de mercado? Trata-se da igualdade entendida como um igualitarismo nivelador, preconizado pelo velho comunismo? Acreditamos que não. A igualdade não pode suprimir o pluralismo e a diversidade de culturas, religiões, concepções etc. Igualdade, nas condições do nosso tempo, é assimilada à eqüidade e à justiça.

A esquerda jamais será democrática se não partir do pressuposto de que o valor da liberdade deve se constituir no valor supremo da democracia. A esquerda deve reconhecer o caráter conflitivo da natureza humana, o pluralismo de desejos, interesses, ideais e valores e a conseqüente expressão plural da vida política nas sociedades. A opção democrática da esquerda implica que se adote as mediações institucionais como forma essencial de equacionamento dos conflitos sociais e humanos. A luta nas instituições e pela mudança das instituições, porém, não anula a luta social legítima por reivindicações e mudanças. As grandes transformações históricas, aliás, ocorreram mediante a combinação de lutas sociais com lutas institucionais.

José Genoino Deputado Federal PT/SP

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