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Esquerda 21 e o liberalismo

Atribuímos a Roberto Campos o papel de um dos próceres mais transparentes do que se convencionou chamar de neoliberalismo no Brasil. E daí reconhecermos a sua coerência, aliás nem sempre comum a tantos liberais de plantão no Congresso Nacional, que costumam deixar suas convicções ideológicas de lado quando a questão é a de se beneficiar dos recursos e sinecuras do Estado. Basta se ver a crise do sistema financeiro brasileiro, tendo como carro chefe o caso do Econômico, e dos grandes produtores rurais, só para citar alguns. Entretanto, não o consideramos uma referência obrigatória na discussão dos novos paradigmas do socialismo, tendo em vista que, mesmo argumentando em sentido contrário, mostra estar com a cabeça presa no que ele mesmo chama de "Capitalismo pré-30" ao desconsiderar o papel necessário e positivo do Estado na regulação da esfera social e econômica.

À guisa de comentário acerca da Revista Esquerda 21, cujo primeiro número circulou no final de 1995, o deputado Roberto Campos, exercitando um dos seus hobbies favoritos — a crítica à esquerda — converteu-a em "álbum de formatura, com retratinhos e frases para a posteridade da família" (Folha, 24/12/95).

Os juízos emitidos por Roberto Campos partem de quem, obviamente, não entendeu a proposta contida na Revista. Em nenhum momento ela se propôs a se transformar em uma espécie de "Marxism Today" ou "Problems of Comunism" brasileiro, empreendimento que certamente exigiria outro tipo de postura editorial. A Revista, elaborada sob a coordenação de deputados e senadores, pretende tão somente discutir, pelo ângulo político parlamentar e com a colaboração de intelectuais e acadêmicos, os novos paradigmas da esquerda e do socialismo e a agenda viva do país tendo como foco as matérias que tramitam no Congresso e assuntos de interesse da comunidade. Tais paradigmas, com a crise do chamado socialismo real — e, também do próprio capitalismo industrial (tão caro aos "neoliberais" de todos os matizes) —, estão na ordem do dia em todo o mundo e de forma extremamente dramática em nosso país.

Em um dos pontos em que se detém mais tempo, Roberto Campos reclama que a Revista não abordou em seus artigos o tema "mais atual do mundo", qual seja, a "tecnologia da transição do para a economia de mercado". Existe mesmo tal tecnologia? É difícil acreditar, e se existe está em crise: haja visto a confusão dramática que se instalou no Leste europeu e as sucessivas derrotas eleitorais daqueles que patrocinaram a suposta "tecnologia". Ao examinar as mudanças que ocorrem na ex-URSS e na China, Roberto Campos parece manifestar simpatias para uma "tecnologia da transição" que promova a abertura econômica, mas que mantenha a ditadura política, como é o caso chinês. Nós da esquerda democrática, achamos que "as livres preferências dos indivíduos" só podem prosperar num ambiente de liberdade política, que é condição da liberdade e do equilíbrio na esfera econômica.

O mundo vive hoje um profundo processo de transformação onde não só o socialismo real entrou em colapso, mas a própria hegemonia neoliberal da era Thatcher e Reagan está se dissolvendo nas novas potencialidades e nos novos dramas da humanidade. O mercado, por si só, em parte alguma do mundo é solução automática para as transformações e crises sociais e econômicas, como acreditam alguns liberais simplificadores. O mercado é tão somente uma instância socioeconômica que não pode ser negligenciada na construção de qualquer alternativa que se queira democrática, mesmo que socialista. Aliás, tal debate é aprofundado no segundo número da Revista, que circula este mês, com a participação do presidente Fernando Henrique Cardoso onde numa longa entrevista, entre interessantes considerações, se define como de esquerda e garante que jamais foi "neoliberal".

Quem lê a Revista Esquerda 21 e o artigo do deputado Roberto Campos pode constatar, de imediato, as diferenças na abordagem dos temas sociais e políticos do nosso tempo. Para a esquerda, a utopia "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" se recupera e se materializa na construção dos processos democráticos das sociedades, onde as novas contradições entre cidadania de cada um e os coletivos instituídos, sejam possíveis de se solucionar sem a tradicional arrogância do poder e sem a guerra. Para Campos, essa utopia, que foi genitora das democracias modernas, resultaria sempre em denuncismo sórdido, em "guilhotina, paredón, gulag" e no caso brasileiro, em "patrulhamento". Nem a democracia dos antigos e nem a democracia dos modernos surgiram vestidas apenas com couraças "técnicas" ou "lógicas". O neoliberalismo quer guilhotinar os valores humanísticos e civilizatórios que sempre foram congênitos à democracia, promovendo em seu lugar um individualismo selvagem que gera exclusão e anomia.

O Estado democrático e sua dimensão pública, para a esquerda, ainda é um instrumento insubstituível para a ordenação dos interesses humanos, juntamente com a sociedade civil e o mercado, quando se trata de promover o desenvolvimento que busque eliminar a exclusão social. O Estado, de fato, não deve tutelar a liberdade dos indivíduos, mas sem a sua mediação fica difícil de se imaginar um sentido civilizatório nas sociedades. Para Campos, o Estado é sinônimo de opressão (paradoxalmente para ele que sempre foi uma figura do Estado e foi um dos principais artífices do estatismo brasileiro), enfim, um "sistema de circuitos complicadíssimos, cuja lógica é, digamos, a amante do ministro ou a conveniência do partido — não as preferências dos indivíduos", como diz em seu artigo.

Para nós, a Razão não é o Estado — e nisto concordamos com Roberto Campos — mas com certeza também não é o Mercado — e aqui nos distanciamos muito.

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