1982-2002

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O aborto em debate

A Câmara dos Deputados e a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) serão obrigadas a se pronunciar, em breve, sobre a questão do aborto, tema polêmico por conta de suas injunções morais, religiosas e jurídicas. Ocorre que, atualmente, tramitam várias emendas e projetos que tratam o assunto de forma global e parcial. Diante disso, é importante que a sociedade acompanhe as decisões que serão tomadas para que se possa pronunciar sobre essa complexa questão, que diz respeito particularmente às mulheres.

Uma das emendas, de autoria do deputado Severino Cavalcanti, objetiva dar nova redação ao artigo 5. da Constituição acrescentando à expressão que garante a "inviolabilidade do direito a vida" a expressão "desde a sua concepção". Visa, com isso, estabelecer a proibição constitucional à prática do abortamento, mesmo para os casos já previstos em lei. O parecer do relator, deputado Armando Abílio, nega acolhida à proposta de emenda por considerá-la contrária aos preceitos de uma concepção plural de sociedade e às tendências da comunidade internacional, que são cada vez mais afirmativas no sentido de descriminar a prática do aborto, desde que praticado dentro do tempo recomendado pela ciência biológica e médica.

Já um projeto de lei de autoria dos deputados Eduardo Jorge e Sandra Starling pretende estabelecer a obrigatoriedade de atendimento dos casos de aborto previstos pelo código penal, pelo Sistema Único de Saúde e pela rede hospitalar pública. Os casos de aborto previstos pelo Código Penal dizem respeito à situação em que a gravidez ameaça a vida da mulher e em casos de estupro. Os deputados querem , com o projeto, garantir condições dignas e o direito ao atendimento às mulheres, por se tratar de uma questão de saúde pública, e evitar que as abortantes corram risco de vida, como ocorre em clínicas clandestinas.

O parecer do deputado Hélio Bicudo na CCJ, entretanto, nega acolhimento ao projeto de lei dos deputados. Além de admitir a possibilidade do aborto somente no caso de risco de vida da mulher em consequência da gravidez e de atribuir a decisão a uma junta médica, independentemente do consentimento da gestante ou de pessoas da família, Hélio Bicudo se pronuncia contrário a todo aborto voluntário, inclusive nos casos de estupro. Ele propõe que o Estado assuma a assistência a gestante e se responsabilize pela vida e pela educação das crianças geradas pelo estupro. Essa posição representa grave retrocesso em relação ao que a legislação brasileira já conseguiu avançar na matéria. Por um lado, quer obrigar as mulheres estupradas a aceitar uma gravidez originada de um ato de violência abominável. Essa imposição, que corresponderia a uma imposição do Estado, resultaria num ato de violência contra a consciência e contra o direito da mulher de dispor de seu corpo tão grave quanto a violência do próprio estupro. Por outro lado, a solução proposta por Bicudo - de o Estado criar e educar as crianças geradas pelo estupro - resultaria na constrangedora situação de a sociedade visualizar os "filhos do estupro", abrindo espaços para discriminações com suas graves conseqüências psicológicas e sociais. Registre-se que o cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, num ato de coragem que lhe é peculiar, admitiu, recentemente, a possibilidade do aborto nos casos de estupro.

Por fim, quero lembrar que um projeto de lei de minha autoria, que venho reapresentando em várias legislaturas, estabelece a liberdade de opção de ter ou não ter filhos, incluindo o direito de interrupção da gravidez até 90 dias após a concepção. Reafirmo aqui que não se trata de instituir o aborto como método anticoncepcional. Trata-se apenas de adotar uma atitude democrática de respeitar a pluralidade das concepções morais nas sociedades complexas do nosso tempo; de reconhecer o direito das mulheres de decidir sobre o momento de ter ou não ter filhos; de reconhecer que a mulher tem a propriedade do próprio corpo e, em condições determinadas, podem interromper uma gravidez indesejada; e de reconhecer que o aborto é hoje uma questão de saúde pública e sua prática clandestina põe em risco a vida de milhões de mulheres.

Todos que se pronunciam em favor da manutenção da criminalização do aborto o fazem em nome do direito absoluto à vida. A ciência e cientistas de renome mundial já se manifestaram inúmeras vezes sobre a diferença temporal e conceitual entre a concepção e a efetiva formação da vida humana. A questão do aborto, até os 90 dias, é, portanto, uma questão situada na esfera moral, filosófica e religiosa. Se vivemos numa sociedade democrática e plural, tanto as posições favoráveis como as posições contrárias à prática do aborto devem ser respeitadas. As que são contrárias de forma absoluta não precisam praticá-lo. Mas em nome dessas concepções não se pode punir ninguém. Não se pode querer impor uma legislação que faça com que o Estado viole a consciência, a vontade e a autodisposição do corpo das mulheres.

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