1982-2002

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Rabin e a paz

A história da vida e as circunstâncias da morte de Yitzhak Rabin revestem-se de todos os ingredientes no sentido de transformá-lo num herói. De chefe do Exército israelense na vitória da Guerra dos Seis Dias contra os exércitos árabes, ele transformou-se em estadista para tornar-se o artífice da paz com os seus mais eminentes inimigos. O fim trágico, motivado pela própria causa que defendia, é o elemento efetivo que o transforma em herói. Desde os gregos, tragédia e heroísmo são um binômio inseparável. As homenagens que foram prestadas por estadistas de todas as orientações e por inimigos e ex-inimigos autênticos são merecidas e evidenciam o sentido heróico chancelado pelas balas criminosas de um fanático. Solidarizar-se com o povo judeu neste momento de dor, significa solidarizar-se com a paz, com a negociação e com a causa do povo palestino.

A morte de Rabin suscita inúmeras e complexas reflexões. Pretendo desenvolver aqui apenas algumas, com a limitação de quem conhece superficialmente a questão do Oriente Médio e com o intuito de tirar lições do trágico acontecimento. Uma observação à distância sobre o processo de negociação que estava em andamento — e que deve continuar — entre as partes conflitantes parece indicar que a liderança governamental de Israel e os líderes árabes e palestinos moderados estavam convencidos de que não há saída para a região fora da paz. Confirmada esta convicção, cabe lançar uma indagação mais profunda: qual é o significado da guerra entre Estados em nossos dias? Ressalvando o imperativo moral da condenação de todas as guerras, parece-me que as guerras promovidas pelos impérios na antiguidade, as guerras de afirmação dos Estados nacionais nos primórdios da era moderna, as guerras motivadas pela expansão colonialista e imperialista, encontravam justificativas pelo fato de proporcionarem a possibilidade de determinadas vantagens materiais aos contendores. Este paradigma mudou completamente, principalmente, há partir da Segunda Guerra Mundial, há partir da Guerra Fria e do próprio fim da Guerra Fria.

Julgo que dois fatores foram determinantes para a mudança do significado histórico da guerra. O primeiro está relacionado com o incremento das armas de destruição em massa, incluindo as nucleares e convencionais. As guerras modernas são guerras que destroem populações e bens civis e torna-se cada vez mais difícil perscrutar uma vantagem material para um Estado que faz uma guerra, mesmo que esse Estado seja o vencedor. O segundo fator, que foi reforçado com o fim da Guerra Fria, diz respeito ao fortalecimento cada vez maior do direito internacional e de instituições internacionais empenhadas em controlar conflitos e garantir paz e a segurança mundiais. Por mais falhos que esses organismos possam ter parecido em conflitos recentes, o fato é que nenhum agressor fica impune diante de atos de agressão injustificáveis. Para sustentar empiricamente esta tese basta indagar sobre qual a vantagem que o Iraque obteve em invadir o Kuwait? Qual a vantagem que os sérvios têm em fomentar a guerra étnica? Qual a vantagem que árabes, palestinos e judeus têm em manter um estado de guerra? Rabin estava convencido, junto com Arafat e outros líderes árabes, de que não há vantagem alguma nesse estado. Por trás do processo de paz do Oriente Médio está o suposto de que somente o estabelecimento de fronteiras voltadas para o incremento do comércio, da comunicação, do intercâmbio cultural, turístico etc., poderá trazer vantagens verdadeiras para aqueles povos e não somente para um dos lados. O desfecho dessa estratégia pode ser a criação de um bloco econômico e comercial na região, a exemplo do que ocorre em outras partes do mundo.

Outra lição importante a ser tirada do assassinato consiste em constatar que os objetivos aparentemente opostos dos setores radicais e intolerantes de árabes e judeus mantém uma interconexão lógica que conduz a resultados semelhantes, senão iguais. Não é por acaso que colonos judeus extremistas e palestinos radicais comemoraram a morte de Rabin. Os dois grupos movem-se pela lógica da guerra, cujo sentido é a destruição um do outro. A remoção de obstáculos que impedem a guerra é uma tarefa comum aos intolerantes dos dois lados. A partir disso pode-se vislumbrar, aqui, a nova face das guerras contemporâneas. Não são guerras movidas por objetivos nacionais, com alcance limitado, ou por razões ideológicas. São guerras radicadas nas "razões" da intolerância, geralmente étnica ou religiosa, com o fim de eliminar o outro pelo simples fato de ser o outro. São guerras totais, mesmo que circunscritas. Essa nova face da guerra se manifesta no Japão, através da seita da Suprema Verdade, no conflito étnico da Bósnia, nos radicais do Oriente Médio, na potencialização do conflito racial nos EUA, nos grupos neonazistas da Europa etc..

A democracia, a tolerância e a civilidade devem dar respostas efetivas ao crescimento da intolerância e do terrorismo com a aplicação da lei que salvaguarda a convivência, a segurança e a paz. Mas, se é verdade que os governantes e as instituições internacionais devem ter a questão da segurança e da paz como ponto permanente de suas agendas, não podemos esquecer que somente a extensão dos direitos universais de cidadania para a maior parte dos seres humanos é uma solução mais eficaz para combater os caldos de cultura de que se alimentam os vários tipos de intolerância.

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