1982-2002

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Tráfico de influência

A crise política, a mais séria do governo FHC, que se instalou por conta das denúncias de tráfico de influência que teria sido praticado pelo ex-chefe do cerimonial do Palácio do Planalto, embaixador Júlio César Gomes dos Santos, expõe para o debate três aspectos importantes que não podem passar em branco. O mais importante deles — e que é o menos abordado pela mídia e pelo sistema político — refere-se ao fato de que mais uma vez se revelou uma relação sem fronteiras entre o poder público e setores da iniciativa privada.

Este não é o primeiro caso no atual governo. Denúncias envolvendo autoridades do Banco Central, o ex-secretário Milton Dallari, entre outros, já vieram a público. Parece que uma das características deste governo consiste em ser composto, em cargos de confiança dos primeiro e segundo escalões, por vários executivos públicos de empresas privadas. Criou-se uma nova modalidade de "funcionário público" que a reforma administrativa, ao invés de se preocupar em combater apenas o corporativismo, deveria procurar extirpar de vez porque se trata de uma forma disfarçada de corrupção, incompatível com a exigência de transparência na democracia. O que as gravações das fitas divulgadas pela imprensa revelam é que, altos funcionários do governo que estão a serviço dos grandes contratos de empresas privadas, estão transformando o Estado numa Sodoma e Gomorra do tráfico de influência.

O episódio do Sivam não deixou de macular também a imagem do governo e do próprio presidente. Os governantes do nosso país parecem cometer o erro sistemático de se envolverem pessoalmente com determinados assessores além do que a liturgia do cargo de chefe de Estado ou chefe de Executivo recomenda. O cargo presidencial requer uma relação formal com subalternos. Max Weber, em "Política como vocação", um dos textos mais admirados por FHC, recomenda ao político que tenha "o senso de proporção" para que se mantenha "à distância dos homens e das coisas", a fim de que possa julgar as circunstâncias que o cercam com a responsabilidade que a política exige. Colunistas dos jornais chamaram a atenção para a lógica própria da corrupção e os métodos que os corruptores utilizam ao cercar o poder. Seria desastroso para o país, que após duas CPIs que sacudiram os seus alicerces políticos, este governo também viesse a ser salpicado por denúncias intermitentes de desvio de conduta com a coisa pública.

O segundo fator realçado pelo caso Sivam indica que os aspectos contratuais do projeto não têm sido transparentes. A necessidade do projeto, os seus custos e os interesses que estão envolvidos, deveriam ter sido melhor discutidos com o Congresso e com a opinião pública. O projeto parece ser realmente interessante do ponto de vista da segurança do país, da vigilância sobre as riquezas da Amazônia, do controle sobre o narcotráfico, da proteção às reservas indígenas e florestais etc.. Ocorre que o comportamento pouco claro de todo o processo de viabilização do Sivam fez com que os aspectos técnicos e militares do projeto ficassem obscurecidos pela trama dos interesses financeiros.

O terceiro elemento que vem à tona está articulado com a escuta telefônica, até agora mal explicada. As circunstâncias nebulosas que estão implicadas na autorização da escuta telefônica do embaixador Gomes dos Santos provam que o país não está dotado de normas e instituições adequadas para enfrentar casos como este. Somente agora a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara começa a discutir a regulamentação do inciso 12 do artigo 5º da Constituição que prevê a possibilidade e violação do direito de sigilo telefônico para investigar crimes hediondos, seqüestros, narcotráfico, corrupção etc.. As duras lições das duas CPIs sinalizavam que este assunto já deveria ter sido resolvido pelo Congresso.

O episódio revela também a falta de interesse do governo em criar um serviço de inteligência civil, subordinado ao presidente e que preste conta ao Congresso, como ocorre em vários países democráticos. Parece que é preciso que aconteçam tragédias pessoais, como a que atingiu a família Collor e a que atingiu a família do assessor da Câmara que levou à CPI do Orçamento ou que aconteçam ilegalidades como a da escuta telefônica, para que o país acorde e perceba que não tem instituições e normas adequadas, capazes de proteger, ao mesmo tempo, os direitos dos cidadãos e a democracia contra atos criminosos. Se a denúncia do tráfico de influência no caso Sivam foi positiva para o país, o fato é que ela foi produzida a partir de significativas doses de ilegalidade. A lição que é preciso tirar do episódio é a de que as reformas econômicas não podem ser absolutizadas em detrimento das reformas e da modernização do aparato político do Estado. O Estado está cheio de velhos condutos onde se instalam práticas autoritárias e a corrupção. Já que a natureza humana sempre é suscetível à corruptibilidade e a ações malsãs, é preciso remover esses condutos para que a democracia possa garantir-se contra a autodegradação

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