1982-2002

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O presidente e o professor

O presidente Fernando Henrique vem sendo acusado de discordar do Fernando Henrique professor. Não tenho condições de avaliar até que ponto esta acusação é pertinente. Mas, ao menos na aula que o professor Fernando Henrique deu na Universidade de Coimbra, Portugal, no último mês de julho, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa, estabelece uma significativa concordância com o que FHC vem fazendo na presidência.

Depois de analisar o significado ideológico de "direita" e "esquerda" na América Latina — e de diluir bastante a diferença entre os dois conceitos — , o professor FHC conclui sua aula definindo o que considera ser a peculiaridade da social-democracia, à qual ele próprio se filia. "O critério da competitividade, da absorção de meios que permitam ganhos de produtividade são a pedra de toque de políticas econômicas que tenham por objetivo aumentar o bem-estar social da produção. E esse é o desiderato da social-democracia. Ela reconhece que o esforço de crescimento econômico é condição para o bem-estar social. Reconhece que certos mecanismos de intervenção podem ser necessários para criar condições internas de competitividade", diz o professor. Esta parece ser uma síntese precisa do que o governo FHC vem fazendo hoje no Brasil. Reduz o problema da modernização à competitividade, ao crescimento econômico e á produtividade, sem levar em conta as condicionantes sociais em que a modernização está envolvida. Para FHC os "mecanismos de intervenção" limitam seus objetivos a introduzir condições da modernização. Estabelecidas as condições, o bem-estar delas dimanaria automaticamente. Esta posição, efetivamente, situa-se à direita do liberalismo clássico europeu que sempre viu no Estado um papel mais significativo na retificação das injustiças sociais.

A social-democracia e qualquer posição de esquerda democrática devem reconhecer, de fato, a competitividade, a produtividade e o crescimento econômico como condições do bem-estar social. Mas a história está farta de exemplos que mostram que a existência simples dessas condições não se traduz, automaticamente, em justiça social e em distribuição de renda. A complexificação da sociedade brasileira, a sua industrialização e o seu crescimento testemunham processos crescentes de concentração de renda. Por outro lado, a social-democracia européia nunca limitou sua ação à introdução daquelas condições. A essência da social-democracia consistiu em ser reformista, em conferir ao Estado um papel reformador com o fim de alcançar uma sociedade de equilíbrio. Esta perspectiva parece que está abandonada pelo governo FHC, que reduz, no fundamental, o interesse público à introdução daquelas condições.

O governo quer esconder o fato de que as reformas econômicas do Plano Real, orientadas para a economia de mercado, estão produzindo consequências negativas em amplos setores sociais. O aumento do desemprego, a inadimplência empresarial e individual, a crise na agricultura etc., são evidências dos custos sociais da estabilização econômica. O governo alega que as reformas produzirão uma justiça social e novas oportunidades no futuro. Se a queda da inflação é desejável e positiva não se pode esquecer que as pessoas têm uma vida no presente. Podem essas pessoas suportar sacrifícios no presente em nome de um incerto bem-estar futuro? Parece-me que é esta a questão que o governo deve responder, ainda mais sabendo-se que o conteúdo das mudanças não foi pactuado com a sociedade. Prevaleceu uma concepção unilateral. Os custos das mudanças estão caindo sobre determinados setores, enquanto que outros delas se beneficiam. Uma concepção democrática de reformas deveria implicar uma distribuição de custos e benefícios, priorizando, nos benefícios, os setores mais carentes da população.

Outro ponto onde se localiza o abandono da perspectiva da reforma social por parte do governo está na reforma do Estado. Hoje o governo procura garantir a solvência do Estado através de medidas técnicas de redução de gastos e de aumento de receitas, sem dimensionar objetivos exteriores a esse ajuste. Com isso, as políticas sociais são as mais sacrificadas. No entanto, os setores que sempre se valeram do Estado para conseguir privilégios não estão sendo atingidos profundamente. A estrutura institucional do Estado brasileiro é fraca diante da pressão de empresas que visam garantir privilégios e protecionismo. A nossa economia está longe de ser uma economia de mercado. É mais uma economia de barganha onde o público e o privado se confundem, onde os interesses do sistema financeiro gerenciam as políticas do Banco Central e onde a força dos grandes grupos econômicos condiciona as decisões do ministério da Fazenda. Com isso, na reforma do Estado, os setores mais fracos da sociedade são os que tendem a perder mais.

Diante de um governo que caminha para a modernização conservadora, parece-me que o papel da oposição não consiste em opor-se as reformas em tese. Mas consiste em apresentar um projeto de reformas que combine as reformas econômicas e a reforma do Estado com a reforma social. Esta é uma diferença substantiva entre esquerda e direita, muito maior daquela que supõe o professor Fernando Henrique em sua aula em Coimbra.

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