1982-2002

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O apitaço e o Congresso

A ação política segundo normas e procedimentos é a essência da democracia. É por isso também que a democracia pode ser definida como o governo das leis. Sem a observância das normas teríamos o "governo dos homens". Ou seja, a vontade arbitrária dos governantes se tornaria a fonte originadora das decisões. A democracia não suprime os conflitos sociais e políticos, mas os soluciona através da mediação das leis. A democracia constitui, assim, um método pacífico de equacionar conflitos. Caso contrário, o recurso à força e à violência se tornaria algo recorrente por parte dos contendores.

O que muitos não entenderam em relação ao apitaço da oposição na Câmara é que não se tratou de um protesto contra a quebra da estabilidade do funcionalismo, mas em defesa das normas democráticas. Há autonomia entre o conteúdo das votações e os procedimentos regimentais. Sobre o conteúdo da reforma eu, por exemplo, sou favorável à flexibilização da estabilidade e defendi que a oposição negociasse com o governo. O leitor merece que o caso do apitaço seja explicado. Todo projeto de lei e toda emenda constitucional podem sofrer Destaques para Votação em Separado (DVS). Como o próprio nome indica esses destaques são votados em separado do projeto ou emenda. Cada partido tem direito a um determinado número de DVS de acordo com o número de deputados.

Os relatores dos projetos de lei e das emendas costumam juntar artigos diferentes em seus relatórios desde que tratem de matérias conexas, semelhantes. No caso da quebra da estabilidade do funcionalismo ela é tratada em quatro dispositivos diferentes na emenda da reforma administrativa. Propõe-se que a estabilidade poderá ser quebrada quando, a) o gasto com pessoal exceder os 60% da receita; b) por insuficiência de desempenho; c) para funcionários não concursados; e, d) para funcionários concursados com período de atividade até 5 anos. O relator agregou esses dispositivos num mesmo relatório, mas em partes diferentes. Se isto é lícito para o relator, por que a oposição não poderia formular um destaque que incida sobre os diferentes artigos correlatos? Não há nenhuma proibição regimental para que isto ocorra. Pelo contrário, é uma exigência da própria racionalidade legislativa adotar este procedimento. Caso contrário, um dispositivo constitucional poderia ser mudado enquanto um outro, conexo, permaneceria imutável criando-se uma contradição constitucional.

O líder do PFL, Inocêncio de Oliveira, fez uma questão de ordem impugnando os destaques da oposição por incidirem sobre partes diferentes do relatório. O presidente da Câmara, deputado Michel Temer, já estava com um requerimento pronto remetendo a apreciação da questão para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). No mesmo dia a oposição se retirou do plenário e pediu uma negociação com as lideranças governistas. A oposição foi totalmente ignorada no seu pleito, fato que gerou o protesto do apitaço no dia seguinte.

É preciso esclarecer ainda que a manobra foi motivada pelo fato dos governistas não disporem do apoio de 3/5 de deputados em plenário. Na CCJ precisariam apenas da maioria simples para derrubar os destaques da oposição. O presidente da Câmara tem o direito de pronunciar-se sobre o mérito das votações. Nas questões regimentais, porém, deve comportar-se como magistrado. Aliás, durante a ditadura militar, em 1983, ocorreu um fato semelhante, mas com desfecho diferente. Naquela época, o senador Nilo Coelho (PDS) era presidente do Congresso. O presidente Figueiredo havia enviado o decreto-lei salarial nº 2065 e o regimento determinava que sua apreciação se iniciasse pela Câmara, onde a oposição tinha maioria. Caso a Câmara o rejeitasse sua tramitação seria interrompida. Os governistas, lembrando ao presidente do Congresso que ele era membro do PDS, propuseram que ele encaminhasse o início da tramitação para o Senado, onde o governo tinha maioria. Nilo Coelho ocupou a tribuna disse que devia agir como presidente do Congresso e não como membro do PDS e recusou a manobra.

Estes episódios mostram que a democracia não pode ser instrumentalizada para favorecer a maioria governista. O regimento da Câmara, sem dúvida é anacrônico e se presta a interpretações arbitrárias. Em 1995, quando concorri à presidência da Câmara, apresentei uma proposta de reforma profunda do regimento. Após minha derrota encaminhei, em nome da bancada do PT, um projeto de resolução propondo a sua mudança. A rigor, nada foi feito. O anacronismo e o caráter confuso do regimento são motivos importantes da ineficácia do Parlamento. Portanto, causas do seu desgaste junto à opinião pública. O regimento da Câmara precisa ser mudado. A oposição tem proposta e aceita formar com os governistas uma comissão de alto nível para negociar as mudanças. O apitaço deve servir também de advertência para a maioria sobre a necessidade de negociar com a oposição os encaminhamentos das votações. Se isto for feito as divergências de conteúdo podem ser disputadas num clima de respeito mútuo entre maioria e minoria.

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